Transformação social? É possível!

Para além do bom & mal: Marshall Rosenberg sobre a criação de um mundo não violento

– Tempo de leitura: 10 minutos

Entrevista com Marshall Rosenberg, feita por Dian Killian e originalmente publicada em inglês na revista The Sun em fevereiro de 2003.

Conheci Marshall Rosenberg quando um jornal de notícias local me encarregou de fazer uma reportagem sobre um dos seus seminários de “Comunicação Não Violenta”. Perturbada pelas desigualdades no mundo e ansiosa por mudanças, eu não conseguia imaginar que utilidade uma técnica de comunicação poderia ter na resolução de problemas tais como mudanças climáticas ou a dívida de nações em desenvolvimento. Mas, me surpreendi pelo efeito visível que o trabalho de Rosenberg tinha em indivíduos e famílias emaranhados em conflito.

A Comunicação Não Violenta, ou CNV, tem quatro passos: observar o que está acontecendo em determinada situação; identificar o que a pessoa está sentindo; identificar do que a pessoa está precisando; e então fazer um pedido daquilo que a pessoa gostaria de ver acontecer. Soa simples, porém, é mais do que uma mera técnica para resolver conflitos. É uma maneira diferente de entender a motivação e o comportamento de nós, seres humanos.

Rosenberg se deparou com violência quando ainda criança. Crescido em Detroit na década de 1930 e 1940, ele foi espancado por ser judeu e testemunhou algumas das piores brigas raciais da cidade, que resultaram em mais de 40 pessoas mortas em poucos dias. Essas experiências o levaram a estudar psicologia como uma tentativa de entender—nas palavras dele—“o que nos desconecta de nossa natureza compassiva, e o que faz com que há pessoas que permanecem conectadas com sua natureza compassiva, mesmo nas circunstâncias mais desafiadoras”.

Rosenberg completou seu PhD em psicologia clínica na Universidade de Wisconsin em 1961 e depois foi trabalhar com jovens em “escolas reformatórias”1. A experiência o levou à conclusão de que a psicologia clínica, ao invés de ajudar as pessoas a serem mais compassivas, na verdade, agregava para as condições que causam violência, por categorizar as pessoas e distanciá-las umas das outras; os médicos eram treinados para ver o diagnóstico, e não a pessoa. Ele decidiu que, diferente do que a psicologia ensinava, a violência não surge da patologia, mas das maneiras como nos comunicamos.

1- centros de detenção de menores (nota da tradutora).

O psicoterapeuta humanista Carl Rogers, criador da “terapia centrada no cliente”, influenciou as teorias de Rosenberg logo no início, e Rosenberg trabalhou com Rogers por vários anos antes de seguir seu próprio rumo para ensinar outros como interagir de maneiras não agressivas. Seu método ficou conhecido como Comunicação Não Violenta.

Depois que deixou a prática como psicólogo, Rosenberg admite que às vezes teve dificuldades com seu próprio método, recorrendo a comportamentos familiares ou temendo os riscos envolvidos em uma abordagem não violenta. Porém, toda vez que ele insistia na Comunicação Não Violenta, ele foi surpreendido pelos resultados. Em determinados momentos, literalmente salvou a vida dele.

Em uma ocasião no final dos anos 1980, solicitaram que ensinasse seu método para refugiados palestinos em Belém. Ele se reuniu com aproximadamente 170 muçulmanos numa mesquita no campo de refugiados Dheisheh. Ao entrar o campo, ele viu vários recipientes de gás lacrimogêneo vazios ao longo do caminho, cada um claramente marcado com “Feito nos EUA”. Quando os homens se deram conta de que seu futuro instrutor era dos EUA, ficaram bravos. Alguns se ergueram e começaram a exclamar: “Assassino! Homicida!”. Um homem encarou Rosenberg e gritou na cara dele: “Assassino de crianças!”.

A pesar da vontade de sair de lá na mesma hora, Rosenberg focou suas perguntas no que o homem estava sentindo, e um diálogo decorreu. Ao final do dia, o homem que havia chamado Rosenberg de assassino o convidou para o jantar do Ramadão em sua casa.

Rosenberg é o fundador e diretor da organização sem fins lucrativos Center for Nonviolent Communication (www.cnvc.org). É autor do livro Comunicação Não Violenta: uma linguagem de compaixão2 e acabou de finalizar um novo livro, a ser lançado por PuddleDancer Press no outono de 2003, sobre a aplicação da CNV na educação: Quando os estudantes adoram aprender e professores adoram ensinar3. Atualmente, está elaborando um terceiro livro sobre as implicações sociais da Comunicação Não Violenta4.

Notas da tradutora:
2- Tradução literal do título da primeira edição do livro. O título atual da versão em português é Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais.
3- Tradução literal do título da primeira edição do livro. O título da edição atual é Teaching Children Compassionately: How Students and Teachers Can Succeed with Mutual Understanding. Ainda sem versão em português.
4- Refere-se ao livro The Heart of Social Change: How to Make a Difference in Your World, que já tem sua versão em português: O coração da transformação social: como fazer a diferença no seu mundo.

Rosenberg, um homem alto e magro, tem uma fala mansa, mas fica animado ao descrever como a Comunicação Não Violenta tem funcionado para ele e outros. Ele tem três filhos e, no momento, vive em Wasserfallenof, Suíça. Rosenberg é muito procurado como palestrante e educador, e mantém uma agenda implacável. O dia da nossa conversa foi o primeiro dia livre depois de meses. Depois, ele estaria viajando para Israel, Brasil, Eslovênia, Argentina, Polônia e África.

Killian: Seu método procura ensinar compaixão, mas compaixão parece ser mais um jeito de ser do que uma habilidade ou técnica. É possível mesmo ensinar isso?

Rosenberg: Eu diria que é uma característica natural do ser humano. Nossa sobrevivência como espécie depende de nossa habilidade de reconhecer que nosso bem-estar e o bem-estar de outros, na verdade, são uma única coisa. O problema é que nos ensinam comportamentos que nos desconectam dessa consciência natural. Não é verdade que precisamos aprender como sermos compassivos; precisamos desaprender o que nos ensinaram e voltar para a compaixão.

Killian: Se a violência é ensinada, então quando isso começou? Parece que faz parte da existência humana desde sempre.

Rosenberg: O teólogo Walter Wink estima que a violência tem sido a norma social por aproximadamente oito mil anos. Foi quando surgiu o mito que o mundo foi criado por um deus heroico, virtuoso masculino que venceu uma deusa feminina malévola. Desde então, carregamos a imagem dos bons que matam os maus. E isso evoluiu para a “justiça retributiva”, que diz que têm aqueles que merecem ser punidos e aqueles que merecem ser recompensados. Essa crença penetrou profundamente nossa sociedade. Não todas as culturas foram expostas a isso, mas, infelizmente, muitas foram.

Killian: Você disse que “merecer” é a palavra mais perigosa na linguagem. Por que?

Rosenberg: Ela compõe a base da justiça retributiva. Por milhares de anos temos operado nos moldes desse sistema que diz que pessoas que cometem atos maus são malvados—isto é, que seres humanos basicamente são malvados. De acordo com esse jeito de pensar, poucas pessoas boas evoluíram, e cabe a elas serem as autoridades e controlarem os demais. E a maneira como você controla as pessoas, dado que nossa natureza é malvada e egoísta, é através de um sistema de justiça em que as pessoas que se comportam bem são recompensadas, enquanto fazem sofrer as malvadas. Para que um sistema desses é visto como justo, é preciso acreditar que cada um merece o que recebe.

Eu costumava morar em Texas, e quando executavam alguém lá, os estudantes batistas bonzinhos do colégio local se reuniam do lado de fora da prisão e faziam festa. Quando o alto-falante anunciava que o convicto tinha sido matado, eles gritavam com entusiasmo etc—o mesmo tipo de gritos que houve em algumas partes da Palestina quando ficaram sabendo dos ataques terroristas do dia 11 de Setembro. Quando existe um conceito de justiça baseada em bom e mal, no qual as pessoas merecem sofrer pelo que fizeram, isso torna a violência prazerosa.

Killian: Mas você não se opõe a julgamentos.

Rosenberg: Eu sou a favor de julgamentos. Acho que não conseguiríamos sobreviver muito tempo sem eles. Julgamos quais alimentos nos fornecerão com aquilo que nossos corpos precisam. Julgamos quais ações irão atender às nossas necessidades. Mas eu diferencio entre julgamentos que servem à vida, que falam sobre nossas necessidades, e julgamentos moralizadoras que implicam certo ou errado.

Killian: Você apelou à “justiça restaurativa” como alternativa. Como isso é diferente?

Rosenberg: A justiça restaurativa é baseada nesta pergunta: Como restauramos a paz? Em outras palavras, como restauramos um estado no qual as pessoas se importam com o bem-estar uns dos outros? Pesquisas indicam que infratores que passam por justiça restaurativa são menos propensos a repetir os comportamentos que o levaram ao seu encarceramento. E ter a paz restaurada é muito mais curador para a vítima do que ver a outra pessoa punida.
A ideia está se espalhando. Estive na Inglaterra há mais ou menos um ano para apresentar o discurso principal numa conferência internacional sobre justiça restaurativa. Esperava que talvez 30 pessoas o assistiriam. Fiquei encantado de ver mais de seiscentos pessoas nessa conferência.

Killian: Como funciona a justiça restaurativa?

Rosenberg: Vi ela funcionando, por exemplo, com mulheres que foram estupradas e os homens que as estupraram. O primeiro passo é que a mulher expresse tudo que ela quer que seu agressor compreenda. Agora, essa mulher sofreu praticamente todos os dias durante anos depois da agressão, então o que sai é bastante brutal: “Você é um monstro! Quero te matar!” etc.

O que eu faço, então, é ajudar o agressor a se conectar com a dor que está viva nessa mulher como resultado das ações dele. Geralmente, o que ele quer fazer é se desculpar. Mas digo para ele que desculpas são baratas demais, fáceis demais. Quero que ele repita o que ele a ouve dizer. Como a vida dela tem sido afetada? Quando ele não consegue repeti-lo, eu enceno o papel dele. Conto a ela que ouço toda a dor por trás dos gritos e berros. Faço ele enxergar que a raiva está na superfície, mas por baixo disso está o desespero sobre se a vida dela voltará a ser como era. E então, faço com que o homem repita o que eu disse. Pode demorar três, ou quatro, ou cinco tentativas, mas finalmente ele ouve a outra pessoa. Já nesse momento pode ver que a cura começa a acontecer—quando a vítima recebe empatia.

Então eu peço para o homem me contar o que está vivo dentro dele. Como ele se sente? Geralmente, de novo, ele quer se desculpar. Ele quer dizer: “Sou um rato. Sou uma merda”. E, novamente, estimulo ele a cavar mais. E isso é muito apavorador para esses homens. Não estão acostumados a lidar com sentimentos, muito menos ainda a experienciar o horror de sentir como é ter causado tanta dor em outro ser humano.

Quando conseguimos passar por esses dois primeiros passos, muitas vezes, a vítima grita: “Como você foi capaz de fazer isso?”. Ela está faminta para entender o que levaria uma pessoa a fazer uma coisa dessas. Infelizmente, a maioria das vítimas tem sido encorajadas por pessoas com boas intenções a perdoar seus agressores. Essas pessoas explicam que o estuprador provavelmente estava sofrendo e deve ter tido uma má infância. E a vítima tenta perdoar sim, mas isso não ajuda muito. O perdão alcançado sem primeiro dar os outros passos é apenas superficial. Oprime a dor.
Depois que a mulher recebeu empatia, no entanto, ela quer saber o que estava acontecendo dentro desse homem quando ele cometeu seu ato. Ajudo o infrator a voltar para o momento do ato e identificar o que ele estava sentindo, que necessidades estavam movendo-o a ter essas ações.

O último passo é perguntar se há algo mais que a vítima gostaria que o infrator fizesse, para levar as coisas novamente para um estado de paz. Por exemplo, talvez ela queira que as contas médicas sejam pagas, ou ela queira algum tipo de restituição emocional. Mas, a partir do momento que há empatia de ambos os lados, é impressionante quão rapidamente eles começam a se importar com o bem-estar um do outro.

Killian: Que tipo de “necessidades” poderiam levar uma pessoa a estuprar um outro ser humano?

Rosenberg: Não tem nada a ver com sex, é claro. Tem a ver com a ternura que as pessoas não sabem como obter e, muitas vezes, confundem isso com o sexo. Em quase todos os casos, os próprios estupradores tem sido vítimas de algum tipo de agressão sexual ou abuso físico, e eles querem que outra pessoa compreenda quão horrível é a sensação de estar nesse papel passivo e frágil. Eles precisam de empatia, e eles usaram um meio distorcido para consegui-lo: infligindo uma dor semelhante em outra pessoa. Mas a necessidade é universal. Todos os seres humanos têm as mesmas necessidades. Felizmente, a maioria de nós as atende de maneiras que não são destrutivas para outras pessoas e nós mesmos.

Killian: Por muito tempo acreditamos no Ocidente que as necessidades devem ser reguladas e negadas, mas você sugere o oposto: que necessidades devem ser reconhecidas e satisfeitas.

Rosenberg: Eu diria que ensinamos as pessoas a deturpar suas necessidades. Ao invés de educar as pessoas a serem conscientes de suas necessidades, as ensinamos a se viciar em estratégias inefetivas para atendê-las. O consumismo faz as pessoas pensar que suas necessidades serão atendidas ao possuir determinado item. Ensinamos as pessoas que a vingança é uma necessidade, quando, na verdade, é uma estratégia falha. A própria justiça retributiva é uma má estratégia. Misture-se a tudo isso uma crença na competição, que conseguimos atender a nossas necessidades somente à custa de outras pessoas. E além disso, que ganhar e derrotar outro alguém é algo heroico e prazeroso a se fazer.

Então, é muito importante diferenciar necessidades de estratégias, e fazer as pessoas entender que toda estratégia que atende às suas necessidades à custa de outro alguém não está atendendo a todas suas necessidades. Porque cada vez que você se comporta de uma maneira que prejudica outros, você acaba se machucando também. Como disse o filósofo Elbert Hubbard: “Não é algo ou alguém de fora que nos pune pelos nossos pecados, os próprios pecados nos punem”.

Todos os seres humanos têm as mesmas necessidades. Quando nossa consciência foca o que está vivo em nós, nunca vemos um extraterrestre em nossa frente. Outras pessoas possam ter estratégias diferentes para atender às suas necessidades, mas não são extraterrestres.

Marshall Rosenberg

Independentemente de eu trabalhar com viciados em drogas em Bogotá, Colômbia, ou com alcoólatras nos EUA, ou com agressores sexuais em penitenciarias, eu sempre começo esclarecendo para eles que não estou lá para fazê-los pararem com o que estão fazendo. “Outros têm tentado fazer isso,” eu falo. “Provavelmente você mesmo já tentou, e não funcionou.” Falo para eles que estou lá para ajudá-los a obter clareza sobre que necessidades estão sendo atendidas por esse comportamento. E depois que obtivemos clareza sobre quais são as necessidades deles, ensino a eles como encontrar maneiras mais efetivas e menos dispendiosas para atender a essas necessidades.


Tradução livre e com autorização da autora do artigo “Beyond Good & Evil: Marshall Rosenberg On Creating A Nonviolent World”, escrito originalmente em inglês por Dian Killian. Disponível na íntegra aqui.

Tradução gentilmente oferecida pela Colibri. Ao copiar fragmentos do texto, cite a fonte.

Dian Killian (tradução por Laura Claessens)
Dian Killian, Ph.D. é consultora, coach e autora. Ela é apaixonada por comunicação efetiva, colaboração e liderança. É treinadora certificada pelo Center for Nonviolent Communication [Centro para a Comunicação Não Violenta] e fundadora da Work Collaboratively. Compartilha a Comunicação Colaborativa (assim ela se refere à Comunicação Não Violenta) com organizações, grupos e indivíduos nos EUA, na Europa e na Ásia.
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