De olho nas polêmicas

Team Will VS Team Chris: de que lado você está nessa treta no Oscar?

– Tempo de leitura: 7 minutos

Oscar 2022. Chris Rock fez uma piada com Jada Smith, pelo fato de ela estar careca. Jada está careca devido à alopecia, uma doença que ela tem. Will Smith levantou-se, foi até o palco e deu um tapa na cara de Chris Rock, em retaliação à piada feita.

O tribunal da internet começou o julgamento. Certos e errados para todos os lados, cada qual com suas fundamentações a definir quem está com a razão na história.

Há quem vá pelas vias do respeito à dignidade do outro, que está numa condição que não gostaria e batalha para lidar com isso.

Outros, vão pela via da liberdade de expressão, ainda que seja uma expressão depreciativa e até idiota.
Tem também quem traga a questão de gênero e racial para a história, falando sobre os desafios de uma mulher negra no mundo.

Alguns, reivindicam a necessidade de iluminar-se para ser maior que as opiniões de gente medíocre e não evoluída.

E tantas outras teses mais, a depender do quanto você quer seguir lendo fofocas e opiniões, aqui e acolá.
Mas, afinal, quem está mais ou menos certo nessa história? Sei lá. Quem sou eu para julgar os afetos dos outros. Agora, se queremos pegar um fato público como esse e dialogar sobre, é possível ser inclusivo com todas essas perspectivas? Aliás, queremos dialogar?

1. A lógica punitivista enquanto reparação

Quando alguém faz alguma coisa que descuida de meu bem-estar, existe um pressuposto implícito: ele precisa pagar pelo que fez. Sofra na “justa medida” do que eu sofri, para você sentir na pele. Só assim estaremos “quites”.

Para alguns, pouco (ou nada), importa o reconhecimento de que não foi uma atitude legal. O importante é a capacidade coercitiva da punição para que aquela pessoa não mais tenha determinada atitude.
Para outros, existe a esperança de que a dor da punição leve a uma reflexão e uma nova atitude de respeito e cuidado surjam. Uma punição educativa, com um propósito nobre.

– Will Smith deveria perder o Oscar.- Chris Rock mereceu.

Ainda que tenhamos ambições nobres, a justiça punitiva se realiza na punição. O depois, fica a cargo de cada parte envolvida, que lida com isso da maneira que bem entende.

Veja. Não condeno essa lógica punitivista, ainda que abertamente eu defenda outros caminhos. Dentre eles, o diálogo. Não sou hipócrita de dizer que a lógica punitiva não paira sobre minha cabeça. Ou que sou iluminado e estou “curado” do meu lado vingativo. Não é sobre isso.

Quando nos percebemos indo nesse caminho da punição, queremos ter novas atitudes? Esse é o X da questão.

2. Um olhar restaurativo para as relações

Quando falamos de restauração, estamos falando de cuidar do que precisa de reparo. Por algum motivo, houve um dano. Entenda dano, aqui, como tudo aquilo que, em determinada medida, atente contra integridade de algo, no que entendemos como integridade.

Um vaso quebrou? Um quadro em que a tinta envelheceu e gostaríamos de manter as cores “originais”? Uma casa com goteira?

Uma palavra dita pelo outro com a qual me senti chateado? Uma agressão física? Um furto? Uma piada sobre determinada característica? Uma ofensa a determinado grupo de pessoas?

Veja que estamos falando sobre impacto.

Quando um impacto surge, uma pergunta importante a se fazer é: O que de importante, para mim, está sendo descuidado?

Talvez seja respeito, no sentido de que valorizo que cada pessoa seja vista e reconhecida pelas características que tem, com limites definidos do que poderia ser dito ou não sobre característica de alguém?

Pode ser empatia, no sentido de ter as possíveis dores de outrem ser levada em conta, antes de tecer algum tipo de comentário?

Pode ser liberdade, no sentido de poder expressar aquilo que gostaria, pois nem todo mundo se afeta com as coisas, e for ponderar os possíveis impactos, ninguém poderia expressar nada?

Quem sabe seja diversão, no sentido de levar algumas gargalhadas às pessoas e descontrair, na esperança de que as pessoas compreendam que não é pessoal?

Talvez seja espaço e limites, no sentido de que as pessoas compreendam até onde vai a liberdade delas, ao interferir de forma direta com o bem-estar do outro, por alguma condição que ele tenha?

Pode ser integridade e segurança, ao entender que falas sobre características de uma mulher negra contribua para o estigma que esse grupo já tem na sociedade, e ter a expectativa de que as pessoas sejam aliadas na desconstrução desses estigmas, ao invés de alimentá-los, direta ou indiretamente?

Quem sabe seja autocuidado e valorização, no sentido de lembrar que não controlamos o que o outro diz, então precisamos dedicar a nos desenvolver para dar conta dos desafios que encontramos?

Enfim… a depender da situação, diversas coisas podem estar descuidadas. Para cada pessoa, um calo pode ser pisado e uma dor diferente acionada. Eu trouxe algumas que, talvez, estejam por trás de posicionamentos que vi por aí.

Uma vez compreendido os impactos mais presentes, podemos conversas sobre eles. Claro que nem sempre as partes envolvidas estão dispostas e seguras para uma conversa, e um terceiro, enquanto mediador, pode se fazer necessário. Entretanto, quanto mais maduros estamos coletivamente para um olhar restaurativo, mais propensos estamos a, entre nós, cuidarmos destes impactos.

Relações são regidas por um conjunto de acordos implícitos e explícitos, sobre o que funciona ou não. Com pai e mãe. Num casal. Com filhos. Com as pessoas do condomínio. No trânsito. Na sociedade.
A capacidade de repactuar combinados, atualizar pressupostos que já não funcionam, sustentando um olhar de cuidado com os envolvidos, é tão necessária.

Peguemos o Will, Jada e Chris, como exemplo. Imagine se… eles conversam. Mediados por alguém para apoiar nessa troca, para ter um ambiente seguro.

Aqui, é meramente um exercício ficcional. Poderia ser sobre qualquer situação análoga, com desconhecidos. Mude os nomes, mude o contexto. Como quiser. Desapegue-se dos nomes.

Talvez, para Will seja importante respeito em relação aos desafios que sua companheira passa. Para Jada, talvez seja importante respeito e compreensão pelos desafios que enfrenta. E para Chris seja importante diversão e engajamento, interagindo com o público ali presente a partir de comentários sobre eles.

[uma conversa se segue…. preencha essa lacuna com um longo tempo de diálogo mediado, com partes se expressando, se escutando, tensões surgindo, o diálogo seguindo… até um possível (não único, e não melhor) desfecho]

Jada, depois de expressar tudo que gostaria, e perceber-se escutada suficiente, ela diz que escutar que Chris entende que isso descuidou emocionalmente dela, foi algo importante e satisfatório no agora. Para além disso, Jada diz que em nenhuma outra situação ela, nem a família, fossem citados em piadas futuras. Esse é um combinado importante pra ela.

Adicional, como um convite, também pediu a Chris para repensar se vale a pena fazer piadas sobre características físicas de outras pessoas.

Will simplesmente consentiu com a fala de Jada.

Chris reconheceu que não foi algo legal aquilo que fez, e que não imaginou o impacto para Jada. Percebeu que o que para ele é “só uma piada” tem impacto real na vida de outros. Disse para Will que teve vontade de devolver o tapa com um soco. E que felizmente não o fez. Disse que um “foi mal” foi suficiente. Até brincou, dizendo “que bom que não foi um soco né, se não estaria com um dente a menos”. Ambos riram.

Nada garante que Chris fará algo diferente dali em diante. Nada garante que Will não terá outros comportamentos como esse.

Entretanto, naquela situação, eles se resolveram. O tapa não ter sido desferido, e eles dialogado mesmo assim. Seriam possíveis muitos desfechos possíveis, mais restaurativos e menos punitivos.

Claro! Isso tudo que estou falando, é mera utopia. Brincando com nossa humana capacidade de imaginar futuros. Nem só de futuros distópicos se constitui nossa imaginação.

Enfim, utopia. Afinal, a realidade é que a gente é um bando de gente vingativa e que gosta de sangue, e jamais acreditaremos na capacidade de termos um diálogo ao invés de troca de ofensas. Quer dizer, o outro é assim, que é um cabaço e estúpido, incapaz de atingir o nível de iluminação que temos. Não é mesmo?

Eu não tenho uma resposta, gente! Só consigo falar a partir daquilo que observo acontecer corriqueiramente (punição) e de outros caminhos possíveis que às vezes vejo (restauração).

Acho contraproducente eu vir aqui regular o que você deve ou não fazer, qual opinião deve ou não ter. Aliás, eu tenho opinião sobre a situação, viu! Achei merda a piada do Chris. Achei merda a reação do Will, ainda que alcance e reconheça a dor que talvez estivesse por trás.

Aliás, eu já fiz piada merda como o Chris. Eu já tive reação merda como do Will. Sem anular devidas críticas, acho importante me reconhecer parte do problema.

A gente pode (e deve) seguir discutindo opiniões. O certo e errado. Debatendo. Argumentando. Quiçá, apontando dedos um pouco menos. Refletindo um pouco mais. E, adicionalmente, começarmos a escutar. Escolhermos a dosagem de cada um. Conscientes de nossa intenção durante uma expressão, durante uma troca.

Afinal, se sequer conseguimos imaginar futuros diferentes do que vivemos agora, no presente, quais caminhos estarão diante de nossos olhos logo ali na frente?

De briga em briga pela razão, o diálogo entra em risco de extinção. Com ele, se esvai nossa capacidade de, para além das diferenças, manter a conexão.

Amanhã é uma nova polêmica. Segue o baile…


PS1: Falar sobre restauração não pressupõe isentar alguém de responder legalmente pelos seus atos na esfera criminal e/ou cível. Pode haver isenção? Sim. Mas essa é uma conversa bem mais profunda.

PS2: Não é plausível colocar vítimas em situação de “ter que” escutar seus agressores. Não é assim que funciona. Então, considere que para haver diálogo, em muitos casos, é um longo trabalho. E nem sempre será um caminho.

PS3: Você pode achar tudo isso romântico e que a vida é muito mais cruel e nada fofa. 99% de mim acredita nisso também. Porém, é meu 1% de esperança que me move a trabalhar em prol de um convívio baseado na escuta e acolhimento. Felizmente, esse 1% grita muito mais alto aqui dentro.

PS4: Justiça restaurativa é muito mais que isso, eu sei. Trouxe algo simples, recortado, anedótico, para dialogar com quem sequer imagina essa possibilidade existir.

PS5: Não foi a primeira vez que Chris fez uma piada dessas. E a reiteração da atitude não inviabiliza a possibilidade de falar sobre um olhar restaurativo, para aquela relação. O que pode-se inferir é que, talvez, isso amplifique o impacto e resposta de uma das partes.

PS6: Depois, Will pediu desculpas por ter se excedido. Até a data em que foi escrito esse texto, Chris não necessariamente declarou que se excedeu. E isso não invalida em nada uma busca por um olhar restaurativo. Feliz, ou infelizmente, as pessoas são livres também para ter atitudes que possam ser percebidas como excesso, e não querer reconhecer que foi excesso para o outro. Oxalá, um dia, com uma lógica restaurativa vigente como cerne da coletividade, sejamos mais sensíveis aos impactos, e exista mais bem-estar coletivo.

PS7: Ou a gente escolhe uma lógica punitiva, ou uma lógica restaurativa. As duas são como água e óleo, não se misturam. Caminham em sentidos opostos.

PS8: Restaurar não é sobre aliviar para o lado de alguém, é entender que “as partes envolvidas” são as mais capazes de dizer o que significa resolução pra elas. Não o nosso moralismo exterior de espectadores de BBB.

PS9: Há muitas nuances sobre a situação, muitos temas transversais. Inclusive, poderia ser mais amplamente explorada a situação da Jada, que foi menos abordada. Aqui, o foco foi usar o tema para falar sobre uma perspectiva de justiça punitiva, restaurativa e escuta. Tu é livre para escrever sobre outras nuances, certamente.

PS10: Tu pode achar que o texto é sobre Will, Jada e Chris. Não é. É sobre nós. O nós manifesto no que ocorreu.

E no final das contas, certamente tu tem uma opinião. Não quero desconsidera-la. Apenas te convido a ampliar o horizonte de discussão, se assim lhe fizer sentido.

Sergio Luciano
Um mineiro que gosta de conversar, aprender com o cotidiano e escrever. Investiga psicologia junguiana, comunicação não violenta, poder, privilégio, democracia profunda, dentre outros temas, para tentar entender um pouco mais esse negócio de relacionar-se com o diferente.
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