Nem todo mundo será um ser iluminado como você.
Eu demorei muito para assimilar isso. E ainda hoje é um constante desafio consciente de manter esse lembrete em mente.
Comecemos pela doce ilusória ideia de que somos melhores que o amiguinho, ou inimiguinho, baseado no caminho que escolhemos para nossa vida.
A primeira vez que me dei conta disso foi cerca de 18 anos atrás, quando comecei a me desviar dos caminhos que seguia na igreja católica.
Já fui muito beato. Daquelas pessoas que ia à missa 3 ou 4 vezes na semana (com o desafio de fazê-lo durante 7 dias na semana). Participava de grupos de oração. Lia a bíblia todo santo dia. Orava pelas pessoas. Até pregador (aquele que leva a palavra de Deus a outras pessoas), já fui.
No alto de minha prepotência, lembro de ir às quermesses e ver as pessoas bebendo, fazendo merda, e eu e tantos outros do grupinho do qual fazia parte, reivindicando as chaves do céu:
– Ixi, esse povo aí? Tudo perdido. Não sabem o que fazem com sua vida. Espero que se convertam e se arrependam antes que seja tarde. Que conheçam a Deus como eu. Só me resta rezar por sua conversão.
Como a vida algumas vezes é uma safada, se não sempre, ela veio e me deu uma rasteira maneira. Lá estava eu, alguns anos depois, fazendo as merdas que eu criticava, garantindo meu tíquete só de ida para os infernos. Segundo o EU de outrora, né?
Iluminado? Eu? Nunca fui. Mas é fácil, e tentador, cair na ilusão de saber o caminho certo, o que melhor funciona para o mundo.
Portanto, voltemos à provocação lá do começo: Nem todo mundo é iluminado como você. Refraseemos, pois:
CUIDADO AO MEDIR A EXPERIÊNCIA DO OUTRO PELA SUA RÉGUA
Cada indivíduo é único. Com seu próprio caminho. Com seus desafios.
Ao descobrir algo que funciona pra gente e aparenta nos trazer bem-estar, com o qual nos conectamos e começa a fazer muito sentido, um calorzinho no coração surge. Então, generalizamos e achamos que é o necessário também para o outro.
Numa extrapolação para uma realidade ainda mais ampla, começamos a definir que isso seria O MELHOR para toda uma coletividade:
– Se todo mundo fizesse assim, assim e assado, e pensasse assim, as coisas seriam ótimas. Basta as pessoas mudarem, oras. Mas elas não estão prontas pra isso. Não atingiram este meu nível de esclarecimento.
Mermão, a gente entra num lugar de superioridade moral tão grande, tão grande, que em nossa experiência nomeamos essa superioridade como nossa doce preocupação com o bem-estar de todos.
Cuidado: não digo que os caminhos que nos são preciosos não poderiam também ser preciosos para outra pessoa, e para a coletividade. Estou apenas dizendo que há uma grande diferença entre vermos isso como um caminho massa, e sermos totalitários achando que esse caminho é necessário para todos.
Perceber que nosso caminho, por mais que fofo, não é para todos, pode ser doloroso. Doloroso porque aí dá trabalho, sabe? Precisamos lidar com o lugar do qual outras pessoas partem. De lugares próximos dos nossos, e de lugares totalmente distantes.
O fato de eu amar Comunicação Não Violenta, por exemplo, não significa que esse caminho seja para todos. Tampouco que todos precisam se dedicar à empatia tal qual eu dedico.
Há pessoas que vão morrer sem ter vontade de se conectar com isso, vão seguir com sua forma de falar mais ríspida, voltada pra acusação. Há outras que vão achar legalzinha minha busca e vão dizer: – vai lá brother, vai na fé.
Aí, o risco do moralismo.
Se a pessoa não segue a minha iluminação, ela é inferior. Está menos evoluída. Precisaria, sim, chegar no mesmo lugar que eu, para o mundo ser melhor. Se todo mundo praticasse a CNV…
Não vai, Sérgio. Não necessariamente. E você precisa aprender a lidar com isso, se acredita mesmo num viver democrático, viu?
Claro que isso não me impede de debater. Dialogar. Discutir. Brigar. Argumentar. Convidar. E por aí vai.
Então, voltamos para minha fuga da igreja.
Perceber que eu tenho em mim a incoerência e dualidade e não sou fofinho como sempre reivindiquei ser, me ajuda a encontrar-me com minha humanidade. Como consequência, posso ter mais espaço para conectar-me com a humanidade do outro.
Isso nos leva a mais espaço para lidar com a pluralidade. Com a diversidade. Com as diferenças entre nós. Com a complexidade.
Temos a escolha de apontar dedos, e de sermos moralistas. Mas podemos lembrar que este não precisa ser o único caminho. O caminho da conversa, escuta, compreensão, se torna uma outra opção. Ainda que seja trabalhoso. Às vezes, doloroso. Outras, incerto.
Aliás, há pessoas para quem o melhor caminho a seguir na vida é este mesmo de ser moralista, pois é isso que a sustenta de pé. Quem sou eu para dizer que não pode fazer isso.
Vamos nos esbarrar, de vez em sempre, e quem sabe conseguimos ser maduros suficientes para nos lapidarmos em nossas diferenças, sem nos matarmos. Tentando, na medida do possível, respeitar os limites e escolhas do outro.
Não somos iluminados. E tá tudo bem.