Saia da zona de conforto

O ser bonzinho e exemplar: doce e presunçosa ilusão

– Tempo de leitura: 5 minutos
Querido alecrim dourado, você quer mesmo se comprometer com uma mudança social? Ou está apenas preocupado em manter seu autoproclamado título de alecrim dourado?

Este texto é um primeiro ensaio acerca de reações moralistas que tenho visto e ouvido, de pessoas comuns, sobre o conflito acontecendo na Ucrânia. Pouco cito o conflito em si, mas proponho um olhar para nossas posturas, por vezes, automáticas e irrefletidas.

Com o tempo, comecei a perceber que seria muito presunçoso de minha parte dizer que sou uma pessoa super fofinha e gente boa, que a violência passa longe de minhas ações. E que o problema, mesmo, é o outro, que está num nível menos evoluído que eu.

Afinal, eu já tenho uma caminhada tão consciente de transformação pessoal, que é inadmissível eu ser colocado no mesmo balaio de gato que todo esse bando de gente inconsequente e violenta, que vejo aqui e acolá. Um dia elas se iluminarão igual a mim e conseguirão enxergar o caminho do bem que eu tenho trilhado.

Ah como é tênue a linha entre o valorizar a jornada que temos, celebrando as mudanças que percebemos em nossos comportamentos, e o lugar moralista e puritano que, revestido de boas intenções e convicções das escolhas que fazemos, se tornam extremamente arrogantes. De forma fofa e sutil.
Aliás, ai de quem discordar de minha boa intenção em dizer que o outro precisa de iluminação e eu indicar o caminho para isso.

Me lembra os tempos de que eu ia à igreja e dizia que todos iriam para o inferno se não aceitassem e seguissem Jesus igual eu fazia. Fofura de garoto com as chaves dos céus e dos infernos em suas pretensiosas mãos pecadoras, visse?

Pois, tem sido um longo caminho de perceber que o viver é UM POUCO mais complexo que essa doce fantasia de bem e mal tão demarcadas.

Uma das coisas que me ajudou a encontrar um caminho de mais escuta e compreensão, e menos arrogância, foi estudar psicologia. Junguiana, em específico.

Comecei a entender um pouco do que está no espectro da nossa consciência. A pessoinha com a qual nos identificamos. Aquela ideia de “eu sou assim e assado”, “carrego estes princípios comigo”, “faço as coisas desta maneira”, “sei isso e aquilo outro”. Poderíamos pensar isso como nosso senso de identidade, sabe?

Entretanto, há coisas que estão para além da consciência da gente. Coisas que fogem ao nosso pretenso racional controle. Que destoam da boba e ingênua ideia de que somos senhores de nós mesmos.

Quem nunca saiu do corpo, fez uma lambança enorme (sem álcool, tá!? 😅) e depois de “voltar a si” disse: “- Nossa, não era eu fazendo isso não”? E, logo em seguida, tentou encontrar 1001 justificativas para não se reconhecer com aquela parte feinha, ou horrorosa, que surgiu.

Para além da nossa consciência, existe também o inconsciente. Algo para além do que percebemos e processamos racionalmente. E por ser inconsciente, é inconsciente mesmo. Não temos como saber o tudão de coisas que tá lá. Não há como mensurar. Pois, se sabido o fosse, inconsciente não seria.

Além do mais, o “ser violento” pressupõe, em diversos casos, compreender o quanto o impacto de nossas ações pode também chegar como violento para outras pessoas. O que para mim talvez seja normal, pouco me afete, para o outro pode ser algo que descuida profundamente de seu bem-estar.
Por exemplo… piadas. Para alguns, uma forma de diversão. Para outros, um descuido profundo e desconcertante.

Diiiito tudo isso, quero trazer uma provocação, que me tem feito muito sentido.

Pouco me importa, hoje, dizer se sou uma pessoa não-violenta. Se sou alguém massa e fofinho, que estou do lado bom da força. Talvez, por ser um tanto perigosa e presunçosa essa afirmação.

O que consigo dizer, com um certo grau de certeza, é que já tenho um inventário de umas 327 violências que já cometi antes, muito ou pouco, e hoje trabalho ativamente para não cometer mais. Atitudes e falas que descuidam muito ou pouco do bem-estar de pessoas ao meu redor, de toda uma coletividade.
Algumas destas violências, inclusive, ainda hoje são presentes em minha vida e faço um esforço maior ainda para me trabalhar e ser capaz de não mais cometê-las. Para quando o impulso de ação vier, eu conseguir respirar fundo, me segurar, fazer novas escolhas. Me reeducar. Uma atitude por vez. Uma pequena vitória de cada vez.

Aliás, outras violências, ainda que não tenha cometido, aprendi com os outros que não seria legal cometê-las. Então, coloque mais algumas boas quantidades de violência no meu inventário de “toma vergonha nessa cara Sérgio, e presta atenção nisso aí”.

Para todas, eu tenho uma precaução enorme com a ideia de “eu jamais as cometeria”. Não consigo afirmar, em hipótese alguma, que isso é uma variável imutável. Só sei que, nas condições atuais e cotidianas, me parece que estou distante de cometê-las. Porém, talvez, exista um limiar que, ao ser cruzado, as variáveis se alterem.

– Mas Sérgio, eu tenho autocontrole. Eu me conheço! Até parece que eu faria umas coisa feiona.
Meu bem, até onde vai sua presunção? Será que até o momento em que despenca lá do alto da sua arrogância, faz uma merda, e começa a encontrar 1001 desculpas criativas para justificar o porquê de você ter dado vacilo?

É doído pensar que temos um potencial de cometer umas ciosas feiona, ainda que esse potencial nunca tenha se manifestado. Mas, quer você queira, quer não, é real esse potencial.

E, por isso, meu querido inventário de violências e vacilos, que se aumenta a cada dia. Aumenta minha responsabilidade. Aumenta minha vigilância. É um caminho sem volta. Viver o cuidado de forma ativa, dá trabalho.

Felizmente, com o tempo, vamos aprendendo a lidar melhor com muitas dessas microviolências. Vamos moldando nosso comportamento. Vamos amadurecendo emocional e psicologicamente. Nossos músculos que antes aguentavam 10kg suados e quase arregando… agora dão conta de levantar uns 90kg. Alguns desafios são mais simples, enquanto novos vão surgindo. Na medida que nossos músculos dão conta de lidar.

Porém, basta um descuido com o movimento, e uma lesão pode surgir. No mais bobo dos movimentos. Vigiai, pois.

É super gostoso e quentinho sair apontando o dedo diante das coisas que vemos acontecendo aqui e acolá. No quintal do Brasil. Do outro lado do mundo. Dedinhos nervosos e ativos prontos para sentenciar a todos. Porém, pouco dispostos estamos a fazer um trabalho de base, que começa internamente, voltado para uma mudança de paradigma.

– Mas Sérgio, tu tá dizendo que não podemos condenar as coisas horríveis que vemos? Temos que nos silenciar diante disso tudo?

Não não, querido. Jamais. As violências explícitas, atrocidades, coisas horrendas, são importantes de serem combatidas e condenadas. Precisamos de ações concretas de mitigação de violências e desescalada de conflitos.

Entretanto, as microviolências estão aí entre nós. Normatizadas.

Estas, me preocupam tanto quanto. Pois estão a deteriorar cada vez mais o tecido social e, ao que parece, nos afastamos paulatinamente de toda e qualquer possibilidade de diálogo com quem pensa diferente.

Se não conseguimos sequer nos escutar. Se na primeira contrariedade nos armamos com ofensas e hostilidades. Se somos profissionais em desumanização e em 140 caracteres emitimos uma sentença… e achamos isso tudo normal…

… nossas posições contra uma guerra são só reações emocionadas (e necessárias, logicamente) diante de uma violência explícita que saltou aos nossos olhos. Mas não passam disso. No fundo, já estamos belicizados. Armados. Combativos. Destrutivos.

Oxalá, o quanto antes, as guerras que chamam a atenção da mídia ocidental, e tantas outras invisíveis aos nossos olhos, terminem. Inclusive as que são há décadas, séculos, perpetradas contra grupos étnicos no Brasil.

Oxalá a gente recupere a humanidade em nós. Entre nós.

Utópico, eu sei. Mas se não fosse esse 1% de utopia, eu me entregaria aos 99% de descrença em nossa possibilidade de conciliação. E já teria aceitado que é questão de tempo até nos extinguirmos. Seja numa guerra sem precedentes. Seja pela Terra se tornar inviável para se viver.

Respira um pouco aí, meu bem. Olha pra dentro. Para de brincar de mocinho e bandido com as coisa tudo. Seja ponte, na medida que seus privilégios permitem.

E, no final das contas, se nada disso que eu falei lhe fizer sentido, segue sua vida. A mim, é cabido o papel de provocar. A você, a escolha do que fazer.

Sergio Luciano
Um mineiro que gosta de conversar, aprender com o cotidiano e escrever. Investiga psicologia junguiana, comunicação não violenta, poder, privilégio, democracia profunda, dentre outros temas, para tentar entender um pouco mais esse negócio de relacionar-se com o diferente.
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Nada justifica!

Nada justifica a violência física. Nada justifica a fome. Nada justifica o racismo. Nada justifica nenhuma violência, verbal ou psicológica. Nada justifica as microviolências, que

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