Já parou para pensar no tanto de versões diferentes de nós afloram nas relações? Uma espécie de baile de máscaras. Tipo, quando tô conversando aqui contigo e conto sobre o que estudo, eu tô assumindo um papel de professor. No sentido de aquele que sabe mais sobre algo e se dispõe a compartilhar e ensinar esse algo.
Tem horas que se você faz um comentário que acho errado ou idiota, chego lá pra te ensinar que não é bem assim, sob o pretexto de ”te colocar no seu lugar”. Poderia dizer que sento no papel de papai educador pelo medo e bronca.
PAUSA: esses nomes dos papéis que estou usando são meros nomes para representar um conjunto de atitudes a fim de discorrer sobre isso. Não gostou do nome, substitua por banana, laranja, ou qualquer nome que queira. E atenha-se ao contexto para onde os nomes apontam.
Esclarecimentos feitos, continuemos.
Quando leio algo que você falou e acho que você está e equivocado, sento no papel de crítico. Aponto-lhe o dedo e digo onde precisa corrigir e prestar mais atenção para ser alguém que faz partilhas melhores. Ou menos merda.
Sua vozinha de crítico não é um tanto arrogante também não? Sorte a tua. Porque a minha é de uma soberba enorme. E às vezes faço merda sem saber.
Tem horas que vou ver você em sofrimento e, claro, meu lado cuidador se ativa e viro o super homem. Estou aqui pra te salvar, amigão. Deixa comigo que tenho a receita de bolo para resolver os seus problemas. Quem nunca assumiu o papel de salvador de alguém? Se tu consegue não fazer isso, me ensina?
Às vezes vou ler você falar sobre uma dúvida que tem, que vai ao encontro daquilo que estudo. Quanto mais tempo de estudo, mais tentador eu querer opinar. Sento no papel de sábio. Senta aqui, jovem gafanhoto. Conduzir-te-ei nos caminhos do aprender.
Ah. Diz a lenda que chega um momento em que nossa sabedoria tá madura e maneira, e a gente descobre que saber algo não significa TER QUE opinar o tempo todo. Ou querer aparecer com esse saber. Isso seria só um desejo infantil de ser visto. Acho que sou uma criança ainda… tenho muito a viver.
Tem também momentos em que vou discordar tão profundamente de você, que vou sentar no papel de acusador. Aponto o dedo na tua cara e digo que você não vale nada e sua opinião de merda deveria ficar guardada no seu coração. Tu já fez isso? Eu já fiz vaaaaarias vezes. Não me orgulho não, viu. Mas faz parte do viver né.
Ah, também tem o papel do moço escutador. Aquele que adora verificar o que o outro sente e precisa, quando o escuta. Foca nisso, sabe. Há quem vai chamar esse papel de “o empático”. Ou, pejorativamente, quando se incomodam, chamam de “o chato que vive querendo ser terapeuta”.
Olha o tanto de gente que a gente pode ser durante uma conversa? E o pior, talvez a gente trafegue entre esses papéis minuto a minuto, ou em segundos, a depender da troca. Tudo é muito volátil. Basta uma resposta que recebemos, para tudo mudar.
ATENÇÃO: tudo que eu falei aqui não representa a realidade em sua essência (quem o alega fazer, só pode estar num estado de inflação tremendo), não cristaliza as pessoas. É, tão somente, uma das possíveis formas de perceber as relações e encontrar encaminhamentos práticos para diálogos mais proveitosos e cuidadosos comigo e com o outro.
Sigamos.
Em meio a todos estes papéis, que refletem muitas vezes falas opinativas e baseadas nas premissas sobre os quais estes papéis se assentam (e que mudam de pessoa para pessoa, ainda que guardem algumas similaridades coletivamente), existe um outro, que gosto de identificar como: “aquele que fala sobre o que sente”. É tipo assim:
– Cara, fico meio perdido ao ouvir seu comentário sobre esse tema que falei, pois eu estudo sobre o assunto e não necessariamente concordo com a premissa que você traz. Tenho vontade de compreender o que leva você a essa conclusão.
– Fulano, eu me percebo bem reativo quando escuto isso, ao mesmo tempo que também tenho vontade de compreender melhor o que diz.
– Eu tô puto, viu. Como assim tu me dá uma dessa? Eu tinha a expectativa de que tudo caminhasse de outra maneira. Fico meio sem ânimo para seguir.
A diferença desse lugar de expressão para os demais é que contamos sobre como vivenciamos determinada situação. Não é sobre culpar, criticar, ensinar, escutar empaticamente. Nada disso.
É sobre dizer, tão somente: “- eu estou assim diante dessa questão”. É falar a partir do eu e não direcionar a fala para o outro. Permitir ao outro saber como nos sentimos.
– Sérgio, quer dizer que não posso falar de nenhum outro jeito, e que tá errado “assumir esses papéis”? Tu deu nó na minha cabeça, bicho!
Não bróder. Tá errado não. Na real, esses papéis tão aí e sentamos neles, nos alternamos entre eles, o tempo todo. Esses, e tantos outros. Isso é viver.
Agora, saber que falamos de lugares diferentes, nos lembra que escutamos de lugares diferentes também.
Se eu tô pagando de professor, mas o outro não quer sentar no lugar de aluno… treta.
Se eu tô assumindo crítico e o outro não reconhece espaço para ser criticado… treta.
Para cada papel que assumimos há um interlocutor ao qual ele se direciona, do outro lado. E muitas das treta rolam justamente nesse lugar onde assumimos um papel, mas o outro não senta no outro papel ao qual estamos endereçando algo.
Calma. O outro não tem a obrigação de fazê-lo, viu. Nem você tem a obrigação de abrir mão do que tá dizendo, porque o outro não quer escutar. Porque não rolou aquele match. Viver é assim mesmo. Esbarrar. Fricção. Construção.
Saber isso pode te ajudar a fazer escolhas conscientes e mudar de rotas, sempre que perceber ser importante.
Adiciono uma última coisa:
Falar a partir do que se sente é uma forma de criar um espaço de conexão com o outro, com a humanidade dele.
Para todos os papéis, exceto esse de expressar-se a partir do eu, a gente pode ter inúmeras divergências e discordâncias.
Quando nos expressamos a partir do eu, do que sentimos e impactos em nós, daquilo que nos é importante, acessamos sempre um lugar que nos é comum.
Todo mundo fica triste, com raiva, preocupado. Todo mundo, em algum momento, precisa de apoio, compreensão, afeto, respeito, segurança. Ainda que em situações diferentes.
Nesse lugar reside aquela luz no fim do túnel. Luzinha essa chamada conexão. E quando a conexão rola, um portal se abre. Afinal, já não somos eu disputando espaço com você. Somos nós ocupando um espaço juntos, a construí-lo.
Assim, a crítica, o ensinar, ou qualquer papel que ocupemos, partem de um outro lugar. Que começa no cuidado, diga-se de passagem.