Hoje é 31 de maio de 2022. Escrevo esse texto em meio ao luto e desesperança que vivem constantemente em mim. Em meio ao meu pessimismo que vive a me lembrar que temos o potencial de cuidar uns dos outros, mas também de descuidar profundamente uns dos outros. Deliberadamente, inclusive.
Entretanto, nesse sombrio lugar, sempre reside uma luz de esperança. Pequena, mas capaz de ganhar espaço e se fazer ser escutada. Ela que sustenta tudo que faço. E inspira esse texto.
Esse texto começou uns 32 anos atrás, em Barbacena, Minas Gerais, também conhecida como cidade dos loucos, por abrigar dois manicômios por lá. Um salve, Nise da Silveira, por sua voz seguir ecoando.
Eu tinha lá pelos 3-5 anos, quando um tiozinho fugiu de um dos manicômios e apareceu na frente de minha casa, com suas vestes brancas, e adentrou.
Eu, me escondi atrás da cortina que, por não chegar até o chão, permitia que minhas pequenas canelas ficassem à vista para olhos minimamente atentos.
Minha mãe, na cozinha. Esse moço, cruza a sala e chega na porta da cozinha. Num susto (e choque) ela se depara com ele e o escuta dizer que fugiu da Mantiqueira (nome do local onde estava internado).
Ela tenta conduzi-lo pra fora meio que com um abraço cordial, enquanto ele mantém suas pernas fixas e imóveis, com seu copo em mãos. Sim, ele carregava um copo.
Então, decide oferecer-lhe leite e algumas bolachas e, não sei como (e nunca o saberei), conversa brevemente com ele ao entregar a comida, e com ele caminha até a porta de casa.
Essa história marcou minha vida. E só fui perceber já adulto, fazendo o que faço. Atuando ativamente na construção de um ambiente onde podemos nos escutar em meio a nossas diferenças, e caminharmos apesar delas, com o respeito necessário à individualidade de cada um. Vulgo, um viver democrático.
Aqui começa essa coisa de revolução, mencionada no título. Depois da fofinha história inspiracional, siga por sua conta e risco. Pode ser que eu descuide de suas expectativas, principalmente se você espere um resposta para as mazelas sociais. Ou esteja certo que a tenha.
Seguimos.
Naquele dia minha mãe me ensinou o que, hoje, vejo como cuidado, em seu sentido mais profundo. Um indivíduo que considerávamos (ou talvez consideramos ainda, né?) necessário apartar da sociedade pela sua condição, e permitidas eram atrocidades inúmeras, que prefiro não contar.
Pesquise holocausto brasileiro no Google. E deixo mais um salve à gigante Nise da Silveira.
Aquela pessoa de vestes brancas, naquele breve momento, foi tratada como uma pessoa. Ainda em meio ao medo e susto que imagino ter surgido, minha mãe olhou para aquela pessoa. Ofereceu algo que comer. Ainda que breve, conversou. Estratégia mais “óbvia” (à época) talvez seria desesperar, usar de violência, desumanizar.
Vivemos tempos bem sombrios. Talvez, sempre vivemos, e agora mais pessoas percebem. Talvez as mídias sociais deram visibilidade a tudo que antes era restrito a micromundos.
Fato é que parece haver uma animosidade latente em tudo que é canto, e que o diferente se torna o demônio a ser exorcizado, e toda e qualquer tentativa de exorcismo, não importa os meios, se torna válida em prol de uma santificação de nossa coletividade.
Aquele moço de vestes brancas sou eu aos olhos daqueles que de mim discordam. Aquele moço de vestes brancas são os outros dos quais discordo. Aquele moço de vestes brancas é aquele que, uma vez apartado da sociedade, nos trará a sensação de normalidade.
Aos corações mais endurecidos, tudo bem existir um requinte de crueldade nesse apartar. A guerra contra o demônio justifica a mão armada em nome de deus. Minúsculo mesmo. Carente da grandiosidade que esse nome carrega.
Eu fico bem chateado por, do lugar que vivo, ter a ilusão de segurança (aos que gostam das bonitas teorizações, posso dizer que meus privilégios me blindam, hoje, diante das mazelas que afetam outros tantos milhões) e sempre sentir-me impotente e com a sensação de que nada que faço será suficiente.
Além disso, tenho um medo danado de perder conforto momentâneo que vivo né. Se tu lida bem com isso, parabéns. Tô longe de estar nesse lugar, confesso.
Então. Isso esbarra nas mortes diárias que acompanho, sabe. Porra, século 21 e um caralho de PRF assassina uma pessoa asfixiada, aos moldes de uma câmara de gás de tempos passados e nem tão distantes em algum lugar da Europa. Detalhe: o cara tinha transtornos mentais.
Pessoas da preferia foram assassinadas em mais uma incursão policial no RJ. A pele, branca não era. Se morreram, boas pessoas de certo não eram. Afinal, quem que é bom moço e morre com balas disparadas pela polícia?
Nem todo apartar da sociedade se dá em manicômios e com pessoas com uma saúde mental pedindo por cuidado. Os limites territoriais de uma cidade nos mostram que esse apartar existe na forma de bairros ditos periféricos. Fora do eixo onde toda a bonança e cuidado transborda. Cuidado do poder público. Cuidado do setor privado.
Tem horas que eu acho que sim, uma luta armada e muitas mortes de pessoas inocentes em situação de privilégio seriam o único caminho para que a gente tome um choque coletivamente sabe? Quando a banalização da vida cruzar a fronteira daqueles que hoje vivem uma ilusória sensação de segurança, a insegurança se tornará realidade. E, quiçá, na dor extrapolada para o coletivo, resida a faísca de transformação.
Calma. Eu falei que não era um texto fofo. Me xingue. Me culpe. Mas respira. Falei que era pra seguir por sua conta e risco.
Uma parte minha deseja a morte destes policiais rodoviários que assassinaram Genivaldo. Meus demônios são pesados, gente. Estudo o que estudo, também para lidar com eles.
Outra parte deseja que nenhum tiro mais seja dado em qualquer periferia. E em nenhum outro lugar. Armas foram feitas pra matar, caralho. E, sim, talvez isso gere automaticamente uma insegurança e medo: – Porra, mas como vão nos proteger?
E eu não tenho resposta pra isso. Mas minha impotência e tristeza precisam contar o que elas trazem consigo.
Só posso te dizer que a sua ilusória sensação de segurança armada manifesta nas polícias que mais matam e morrem, te afastam do risco de morte. Outros, estão com alvos marcados nas costas.
Calma. Tem um outro lado meu que também acha que tacar fogo em tudo vai levar a uma convulsão maior, mas que logo vai dar espaço a novas estruturas de controle, poder e opressão. Ah esses demônios, à espreita para fazerem do campo coletivo, seu reino. Orai e vigiai, não?
Ah, e sua pretensa ideia de que sabe o significado de santidade e que o mundo seria perfeito seguindo seus preceitos e valores à risca, é uma face mortal da luz que você diz emanar, viu? Quantos já morreram em nome de deus?
– Sérgio, que raios isso tudo tem a ver com essa tal de revolução da escuta?
Voltemos à dona Iára. Vulgo, minha mãe.
Eu tenho um sonho de que a gente possa aprender cada dia mais a oferecer um copo de leite e algumas bolachas (ou biscoitos) para quem a gente veste de roupas brancas e pretende que melhor seria se estivesse apartado.
Nossas revoltas são necessárias. Tudo que falei até agora, acho importante para quem o faz. Ao mesmo tempo sinto saudade de um mundo onde a escuta seja uma das raízes. Mundo que existiu 32 anos atrás, por minutos apenas, em meu pequeno mundo.
Mundo que se manifesta a cada momento que meus demônios gritam e os acolho, que meus cruzados da santidade levantam armas e os acolho, e que olho para o outro para além do que nos separa.
Não tô te falando pra sorrir e dar flores para quem te aponta uma arma na cara, viu. É tentador levar os exemplos para os extremos e usar um argumento a partir do absurdo pra contradizer o que está em pauta.
Em meio aos polos que talvez nunca desapareçam, existe um meio do caminho de situações que, hoje, se tornaram inconciliáveis. Inconversáveis.
Uma revolução da escuta nada oferece, senão um convite a começarmos a criar espaços onde mais vozes possam ser escutadas e acolhidas. Não por todos, certamente. Escutar exige esforço. Talvez não seja pra você. E, nem por isso, significa que não precise existir alguém disposto a escutar. Quisera eu que mais alguéns surgissem. Muitos mais.
Minha vida me ensinou que um moço de vestes brancas com um número de identificação, que outrora estava internado em um manicômio por ter uma condição mental (ou decisão arbitrária de alguém sobre sua sanidade) não se resume a isso. Isso é apenas uma face de seu existir.
Hoje olhamos muito para as vestes do outro e diagnósticos precipitados que fazemos, e pouco (ou nada) nos abrimos para o que está além.
Escutar é chocar-se com o diferente e manter-se presente e atento, disposto a descer dois ou três lances de degraus na profundidade de nós. Do campo que surge entre nós.
Escutar não vai trazer nenhuma resposta imediata às crises que vivemos. Não vai ser a receita de bolo que trará a paz pra humanidade. Não vai exorcizar demônios. Não vai dar força às suas santas cruzadas.
Escutar vai permitir criar um espaço de não saber e possível conectar e construir. Isso, dá medo. Incerteza. Impermanência. Ausência de controle.
Num mundo onde batemos o martelo da justiça sobre tudo e todos, a todo o tempo, e pensamos saber mais de alguém que ele mesmo… num mundo onde a gente guerreia por uma opinião…
…escutar se torna resistência. E, por isso, uma revolução.
Disclêimer a prepotentes de plantão:
Tu pode achar um monte de merda tudo isso. Pura utopia. Descolado da realidade. Inocência. De certo, talvez o seja. Mas, da dita sanidade que tenho visto, e o lugar onde chegamos com ela, eu só sinto desconexão.
Escutar pra mim se torna esperançar. E enquanto tu segue com suas tentativas do lado daí, sigo com as minhas do lado de cá.
Talvez tu queira me colocar vestes brancas e carimbar o número de mais um idiota. Pega de volta e olha pro espelho. Isso é teu. Não meu.