Big Brother Brasil 2022. A médica goiana Laís Caldas enviou um torpedo à atriz Linn da Quebrada perguntando: “Você está solteiro?”. Inicialmente a mensagem foi enviada de forma anônima, e depois Laís se identificou como autora da mensagem.
Detalhe: Linn da Quebrada é uma pessoa trans (de sexo biológico masculino) que se identifica no campo feminino da identidade de gênero e tem preferência explícita por ser tratada pelo pronome “ELA”.
Apesar das polêmicas, as duas conversaram e se entenderam. Sentindo-se mal após o episódio, Laís chamou Linn para uma conversa na qual explicou a iniciativa. Segundo a médica, a mensagem levada em consideração uma fala de Linn, que foi reproduzida, e não uma pergunta vindo da mesma.
A goiana disse ainda que é impossível confundir gênero e elogiou a colega de confinamento, dizendo-se bastante preocupada em ter magoado a artista. Linn afirmou que entendeu o posicionamento e agradeceu.
Certamente esse é um tema delicado e que gera muito barulho entre as pessoas. Um tema que, entre o público em geral, seja na internet, seja nas conversas pessoalmente, tende a gerar polarização. De um lado o time do “transfóbicos não passarão”. Do outro, o time do “vai-te à merda militante”.
Agora, imagina duas pessoas. Uma que está certa de que o torpedo enviado por Laís foi transfóbico. Outra que entende que o torpedo não foi transfóbico. As duas, então, começam a discutir. Uma delas resolve colocar em prática um pouco do que aprendeu sobre Comunicação Não Violenta. Ou seja, decide adotar uma postura de mais escuta, no que chamamos de tentar estabelecer um diálogo empático. O que será que pode surgir?
Considerações importantes
1. Possivelmente, se você está acostumado com uma postura de enfrentamento, e está certo de que numa conversa o objetivo é ganhar o argumento e colocar o outro em seu lugar, este conteúdo pouco irá somar para você. Há grandes chances de você perder seu tempo e, ao final, simplesmente tecer críticas e considerar o texto uma porcaria pelo simples fato de postular algo diferente do que espera.
2. Não estamos reivindicando que o caminho que exemplificaremos é o melhor caminho. Tampouco acreditamos que você, ou qualquer pessoa, tenham que agir desta maneira. Nosso objetivo é modular uma forma de se comunicar pautada na Comunicação Não Violenta e que busca, muito mais do que convencer o outro daquilo que já estamos convencidos, uma tentativa de conexão com ele. Ainda que ao final nada “se resolva”.
3. Esta postura é totalmente possível, e aqui na Colibri adotamos em diversas conversas sobre temas complicados, com pessoas que pensam diferente. Teve algumas que foram super proveitosas, que significa que conseguimos manter a conexão e tivemos surpresas. Entretanto, nem sempre conseguimos chegar num lugar de conexão. Às vezes discutimos e brigamos. Então, não ache que tudo são flores. É, tão somente, uma inspiração para quem deseja seguir um caminho de escuta e diálogo, apesar das infinitas diferenças e das diversas certezas que carregam.
Considerações feitas. Vamos ao exemplo.
E se a gente conseguisse dialogar com quem pensa diferente?
Manuel (M) é uma pessoa que entende a fala de Laís como transfóbica e vai conversar com Pedro (P), que entende que a fala não foi transfóbica coisa nenhuma.
M: Olha Pedro, acho que você está bastante equivocado com essa ideia aí de falar que a Laís não foi transfóbica. Século 21 meu, não rola mais. Ela tinha informação.
P: Ah Manuel, lá vem você querendo impor sua visão de que sabe que é o certo né. Quem vê pensa que você nunca erra, ou nunca fala uma coisa e percebe depois que falou. Ou se arrepende.
M: Sim, eu sei que não sou perfeito. Mas me atacar com isso para desqualificar o meu argumento, é bem raso né. Eu só estou dizendo que transfobia não tem a ver com intenção, mas com a atitude em si. Quer a pessoa queira, quer não.
P: Xiiii, lá vem você querer colocar rótulos e dizer que todo mundo é transfóbico, mesmo quando fulano faz uma brincadeira. Esse politicamente correto é muito chato, viu. Puta merda.
[Neste momento, Manuel percebe que está entrando no jogo da culpa e acusação, buscando disputar com Pedro quem ganha a argumentação. Então, ele coloca em prática o que viu sobre autoempatia, empatia silenciosa e empatia em voz alta.]
M: Putz, pera! Vou dar uns passos atrás. Percebi que estou querendo impor pra você essa ideia que tenho bem viva, em relação a transfobia e outros preconceitos. E acho que não tá gerando conexão.
P: Olha! Iluminou-se e percebeu que é chato, é?
M: Na verdade, continuo sendo chato e tendo minha opinião bem forte sobre essa situação. Ao mesmo tempo, sinto vontade de escutar com mais qualidade como você percebe essas questões, ao invés de ficar argumentando.
P: Mas você não tá fazendo isso só pra me convencer no final não né? Porque tem uns aí que ficam assim, amaciando, pra depois dizer que tô errado.
M: Bom, sendo sincero, até tenho vontade de te convencer sim, viu. Mas, não tenho esse poder né.
P: Não mesmo. Eu que sei daquilo que acredito. Ainda bem que você entendeu.
[Perceba que Pedro segue num sutil apontar de dedos para Manuel, e com algumas provocações que, caso Manuel não estivesse presente e atento, o levariam novamente ao lugar de briga e discussão.]
M: Então, pelo que entendi você disse que a Laís não cometeu nenhuma transfobia, porque ela teve uma boa intenção de brincar com a Linn, a partir de uma coisa que ela mesma tinha lido antes sobre a Linn, é isso?
P: Sim. Isso mesmo. A Linn complica as coisas, inventando esse negócio todo de travesti, de não mulher, mas não homem. De sei lá o que. Só ela entende estas coisas, e a culpa é da pobre Laís que foi brincar? Convenhamos né?
M: Ah… ok. Existe um incômodo e frustração de que quando uma pessoa se preocupa com essa coisa toda de gênero, orientação sexual, sexo biológico, torna tudo tão chato e bagunçado, que você perde o interesse em se conectar com o tema?
P: Claro! Tanta volta pra nada. Tem tanta gente passando fome, coisa pra cuidar. E vai se preocupar com que pronome usa? Esse povo tem que parar de mimimi e se preocupar com coisas sérias.
M: Espera. Fico um pouco perdido porque estamos tomando agora um caminho que acho que amplia muito as coisas e quero focar na compreensão. Você se incomoda com pessoas buscando novas formas de se definir, pois entende que isso é banal perto de situações que vê como mais urgentes?
P: Claro! Se mudar pronome mudasse o mundo, seria ótimo né. E ainda me força a acertar sempre.
M: Então além de achar que é algo que não é produtivo, você ainda se incomoda com o fato de parecer que tem que pisar em ovos, pois sempre existe o risco de ser criticado, ou cancelado, ao usar um termo diferente do qual você não tá acostumado.
P: Sim, isso mesmo. Não estou acostumado, e acho uma palhaçada me obrigarem a acertar sempre. Não convivo com ninguém assim, que é trans, ou sei lá o que.
M: E quando você diz que é uma sacanagem o que estão fazendo com a Laís, imagino que você se sensibiliza com a situação em que ela está, pois poderia ser você no lugar da dela, e talvez fazendo uma brincadeira parecida. E gostaria de ser compreendido e respeitado pela brincadeira que fez, ao invés de ter um rótulo colocado sobre você. Sim?
P: Isso! Ufa! Até que enfim. Até parece que eu sou um vilão de filmes né.
M: Ahá! Então a treta toda é que você entende que há uma diferença grande entre brincar, e ser transfóbico. E você não aguenta ver pessoas que colocam tudo num mesmo balaio de gato.
P: Siiim Manuel. Balaio de gato. É bem isso. Daqui a pouco vão me comparar a essas pessoas que fazem coisas horríveis né. Jamais serei igual a pessoas que batem em homossexuais e pessoas trans.
M: Claro, lhe parece desproporcional a forma como tratam o caso da Laís, e percebe que é justamente isso que estão fazendo com ela… colocando-a no lugar de pessoa horrível.
P: Sim! Claro! Transfobia é crime, oras! Até parece que vou concordar com bater em alguém, ou depreciar o outro propositalmente e querendo vê-lo mal.
M: Olha só… ambos concordamos que transfobia não é algo legal.
P: Óbvio né. Você achou que eu ia concordar com este absurdo?
M: Na verdade, foi só uma surpresa e celebração, pois percebo que consigo me conectar um pouco mais com o que é importante pra você. E confesso que me surpreendi com a intensidade que você falou que transfobia é crime. Me pareceu bem importante pra você respeitar as diferenças e escolhas de vida de cada um.
P: Ah sim. Com certeza né. Aliás, quer dizer que você concorda comigo, que o negócio aí da Laís não tem nada a ver com transfobia né?
M: Bem, eu não disse isso. Mas se você estiver a fim de entender um pouco mais de onde parto para olhar pra essa situação, talvez a gente encontre outros pontos em comum também. O que acha?
FIM. POR AGORA.
Esse exercício é espelho de diversos momentos que dialoguei com o diferente, sobre este e outros temas mais. Construir a conexão e a relação pode levar tempo. E não tem fórmula mágica. Só podemos, a cada instante, seguir decidindo se queremos manter o foco na escuta e na conexão, ou passar a defender uma posição. Ambas as escolhas são legítimas e cabe a cada um saber até onde dá conta de ir, e quando parar.
Aliás, acredito que só o fato de conseguirmos separar os momentos em que queremos debater um tema numa perspectiva psicológica, sociológica, dentre outras (que implica uma profunda divergência de opinião, muitas vezes) e escutar de onde o outro parte com intenção de compreensão, teríamos ganhos enormes em qualidade de comunicação.
Mas, e aí, a Laís foi transfóbica ou não foi?
Se você ainda está se perguntando isso, e esperando uma resposta, sinto lhe informar. Não me apetece a ideia de dar uma resposta, pois essa resposta você já deve ter. E se não tem, tá tudo bem. Mantenha-se sem resposta. O que me apetece é perguntar e provocar:
1. Quando você defende que o comentário de Laís foi transfóbico, do que você está querendo cuidar?
2. Quando você defende que o comentário de Laís não foi transfóbico, do que você está querendo cuidar?
3. Você está disposto a parar e escutar o outro, mesmo que já tenha sua visão bem clara sobre a situação?
4. Você tem medo de que escutar o diferente vá trazer a sensação de que concorda, ou vá ampliar a certeza dele?
Num mundo onde cada vez mais aparentamos ter certeza de como as coisas são ou deveriam ser, se faz necessário sustentar um espaço de não saber e uma busca constante por escutar e compreender.
E isso não significa que precisamos para de debater e defender ideias. Pelo contrário, é muito necessário. Na tensão reside nosso potencial de criação. Significa, tão somente, lembrar que às vezes escutar pode ser uma saída. Ainda que seja impensável e aterrorizante imaginar que isso significa perder o controle de uma narrativa.
Escutar é uma ação ativa de transformação.
Ressalva importante: é fundamental endereçarmos situações de preconceito contra diferentes grupos minoritários. Este texto não depõe contra uma luta por mais direitos e tampouco pretende definir COMO se dará essa luta. É apenas um convite para pessoas que, em condições de dialogar ao invés de polarizar, o façam.