Saia da zona de conforto

Pare de romantizar a guerra

– Tempo de leitura: 6 minutos
Querido alecrim dourado (parte 2), seus dedinhos nervosos estão ávidos para estar do lado da justiça. Ávidos para encontrar um culpado pelo que foi ou não foi. Porém, você esquece que são outros corpos sofrendo com esta guerra...

Dias atrás dias atrás eu ensaiei falar sobre esse conflito que estamos vendo na Ucrânia. Sutil, dentro de um texto sobre microviolências. Sigo hoje, ensaiando e sem pretensão de ser moralista com você, mas trago uma reflexão sobre nossas opiniões e compartilhamentos, por vezes irrefletidos. Se espera mãozinha na cabeça e palavras fofas, siga por sua conta e risco.

Vejo muita gente dizendo “Ucrânia nós estamos com você! Força! Resista! Seja soberana!”

Vejo pessoas compartilhando fotos de uma criança com o que parece ser um fuzil nas mãos, supostamente na Ucrânia. Não sei se é real a foto. Mesmo que não seja, vejo ser real a expressão de “estamos com você” e admiração da postura da garota.

Vejo pessoas deslumbradas com o que entendem como mulheres belas e topzera em trajes de guerra, com armas na mão.

Vejo países prometendo ajuda e mais e mais armas, para que a Ucrânia resista ainda mais. E, certamente, contribua para o máximo de baixas possível de russos durante essa guerra.

Vejo empresas retirando seus negócios da Rússia, sem mais aparentes explicações, como forma de protesto. E vejo mobilização nas redes para que nenhuma empresa lá continue.

Vejo diplomatas aplaudindo Zelenski e figuras diplomáticas ucranianas. Aliás, vejo muitos aplausos ao heroísmo de Zelenski.

Calma. Pausa. Respiremos fundo.

Pode ser que você tenha começado a pensar que sou pró Rússia e concordo com a invasão. Se assim o fez, sossega o facho. Que raios de polarização desgracenta em que não se pode falar, que já vem um paladino sacar a carta do moralismo. Sossega, meu bem. Sossega. Tô só falando o que percebo, daquilo que chega aos meus olhos e ouvidos.

Sigamos.

Eu vejo muita exaltação de heroísmo e resistência diante de uma opressão sobre a nação ucraniana e execração da Rússia, que certamente vai no pacote todos os cidadãos da mesma.

Eu vejo pessoas indo de países diferentes para lutar no front, em suporte à Ucrânia contra a Rússia.

Genuinamente, me conecto com algumas boas intenções que suponho haver em todas estas manifestações que citei acima.

Me parece que tem a ver com justiça, no sentido de acharem uma merda o que Putin faz, e entenderem necessária uma reparação, que talvez comece pela condenação e cancelamento da nação Russa.

Fico pensando que transborda apoio e cuidado, com pessoas sensibilizadas com as dores de pessoas comuns que estão sob ataque e migrando, forçadamente.

Também imagino que tenha um pouco a ver com expressão, de fazer ressoar a própria voz diante de questões que tanto indignam.

Diante de um descuido imenso com tantas vidas, ou potencial de descuido, me parece que aquilo que poderia chamar de “nossa humanidade” aflora. Estamos sensíveis e queremos cuidar, da forma que podemos.

Acho legítima toda preocupação que vejo, ainda que não concorde com algumasexpressões que tenho visto quando fala-se de apoio. Aliás, não necessariamente com as expressões, mas com o simplismo sobre o qual elas se assentam.

Quero te contar, agora, o que vive em mim diante do que se passa na Ucrânia.

Eu lamento muito essa guerra. Não que meu lamento mude alguma coisa nesse planeta, sabe? Mas o lamento existe.

É uma espécie de luto por ver que ainda existe espaço, hoje, para guerras visíveis e invisíveis. Por lembrar que quem paga o preço é o seu Zé. A dona Maria. Os meninos e meninas sonhadores. Os trabalhadores. Gente comum. Gente como eu e tu.

Eu só consigo pensar, prioritariamente, no povo russo e ucraniano, sofrendo com impactos da guerra e sanções. Suponho que existam impactos para ambos.

A única coisa que me vem em mente é o desejo que essa guerra pare. Pare ontem. Que voltemos no tempo, se possível, e nada disso rolasse. Que as coisas se resolvessem de outra maneira.

Calma. Não sou um jovem bobo sonhador e alienado da realidade dura e cruel do mundo tal qual se organiza. Isso é a última coisa que sou. Tô ligado na complexidade que é essa coisa toda.

Sei que não tenho poder algum sobre esse conflito do outro lado do planeta. Não sozinho, né. Juntos, a gente tem capacidade grande de influência. Com as mídias sociais, uma narrativa se alastra e pode, facilmente, influenciar dinâmicas internacionais. Não necessariamente de mudança de um cenário sozinho, mas certamente em determinadas medidas. Influência essa que pode variar caso a caso né.

Me entristece ver que estamos, coletivamente, levantando uma imensa voz de condenação na Rússia, enquanto pessoas comuns.

Condenação da Rússia e exaltação da Ucrânia. E, pouco ou quase nada, um simples e uníssono: paremos essa guerra agora.

Não são nossos corpos a serem bombardeados. Ou sob o risco de iminente bombardeio. Não são nossos corpos se movendo com nada mais que uma pequena muda de roupas, para centenas ou milhares de km distante de nossas terras. Não são nossos corpos no front de batalha.

Esse conflito é o Big Brother, e estamos assistindo o que tá rolando e torcendo para um lado do paredão. Ao invés de dizermos que essa porra de Big Brother não faz sentido algum.

Não importa que corpos são eliminados desse BBB e nunca mais voltarão à vida. Em algum amanhã já não haverá mais lembrança desses coadjuvantes mortos. Alguns meses se passarão, e as marcas desse conflito continuarão nos corpos físicos e psíquicos de milhões. E para os twiteiros e facebokeiros de sofá, será uma vaga memória.

Agora, meu lado frio e racional.

Estamos falando de um conflito bélico, um jogo desgraçado de poder que não se resume a uma paleta binária de cores: preto e branco. Não. Não se resume a tomar partido de um lado e tudo se resolve.

Também sei que não há solução fácil a partir do momento que uma guerra eclodiu. E sei que vai haver muitas perdas, seja qual for o desfecho. Para todos os lados. Para a Ucrânia, perdas de vidas.

Veja, não quero dizer que a Ucrânia tenha que se render. Tampouco que Zelenski deve aceitar todo e qualquer termo de negociação de Putin. Sei lá eu o que seria, dentro do jogo político, uma negociação aceitável. Especulações, certamente temos muitas. Certezas… bem, tome cuidado com elas.

O que quero é, tão somente, me eximir de tacar lenha na fogueira e assumir um lado na polarização enquanto a bala tá comendo no lombo dos outros.

Se tiver um lado que me apetece, é o lado do cessar fogo imediato. O lado do diálogo. Eles, poderosos, que se virem. Mas que não haja guerra. Que não haja sangue de uma população derramado.

E você pode dizer… “mas é só o Putin fazer…”

Meu bem, essa porra é um conflito internacional de proporções absurdas, que não é de hoje, cheio de capeta envolvido na parada… sério que “mas é só o Putin…” é um argumento válido do ponto de vista de potências bélicas internacionais?

Pera. Preenche lá o Google Forms de sei lá onde, recrutando os salvadores da pátria que tem a solução disso tudo na ponta da língua. Tu é um achado, viu? Precisa urgente ser ouvido e visto lá na telinha das conferência da ONU para trazer a solução. Ou, sentar com Putin e Zelenski, e iluminá-los.

Nossos dedinhos nervosos estão ávidos para estar do lado da justiça. Ávidos para encontrar um culpado pelo que foi ou não foi. Mas, caralho, cadê esses dedinhos nervosos a serviço de um cessar fogo? Ou a serviço de uma redução da polarização, de mais escuta e compreensão da complexidade das dinâmicas internacionais? De repúdio a declarações belicistas e puritanas de diversos líderes que só cagam na cabeça de gente comum, e capitalizam em cima desse conflito?

Pera. Não tô relativizando não. Tô só querendo te dizer que tem muito mais cores nessa coisa toda. Nuances. Complexidades. E, quer você queira, quer não, fazem parte da equação.

Aliás, tu não precisa fazer nada do que tô falando. Tu faz o que quiser. Tô aqui pra provocar suas gostosas e quentinhas certezas. Mas o quentinho que está é um lugar a se ficar também.

Em tempo. Putin tá errado em ter invadido. Vacilão. Cuzão. Apelou para uma ação horrível, pois vidas importam. Ao menos, no mundo que acredito que possamos viver.

Pronto. Agora tu sabe que tenho opinião sobre.

Para ser a favor da paz, você não precisa ser adorador do Putin. E você pode ser a favor desse cessar fogo, sem endeusar e mitificar as pessoas na Ucrânia. Isso desumaniza.

Uma criança pegando em armas não é “cool”. Nem isso, nem uma mulher que você acha beldade, com armas na mão (aliás, isso pode até ter a ver com objetificação da mulher, tá). Ou um dito macho num vídeo celebrando a morte do adversário, ou mostrando armas de grosso calibre.

Não. Essas coisas não são patriotismo. É só patético mesmo. É sinal do fundo do poço que chegamos. É a desumanização se materializando. É o resultado de nossa incapacidade de diálogo.

E se a gente, nesse BBB que se tornou esse conflito, consegue idolatrar e romantizar uma resistência diante da guerra, belicizados estamos nós. Estávamos apenas esperando um lugar para apontar nossas armas.

Foi uma merda escrever este texto. Tá redundante, eu sei. E talvez seu nariz já deu voltas de tanto que torceu. Quem, nessa merda, você encontre uma flor. Ou um cogumelo né. Tem pra todos os gostos.

Mocinhos e bandidos tão demarcados só existem nos filmes de Hollywood, meu bem. Que, diga-se de passagem, desde o começo você já sabe quem vai ganhar né?

Nessa guerra tem um monte de lobo em pele de cordeiro. Santos e mártires existem só nas narrativas que mais convém ao interesse de quem os nomeia.

Guarde seus aplausos. Seu corpo não está sofrendo com essa guerra.

Em tempo, e pra não perder a deixa: existem tantas guerras nos quintais de nosso Brasil, e nas periferias do mundo, que o cheiro de sangue se espalha. E nosso olfato, e tato, falha.

A se pensar…

Sergio Luciano
Um mineiro que gosta de conversar, aprender com o cotidiano e escrever. Investiga psicologia junguiana, comunicação não violenta, poder, privilégio, democracia profunda, dentre outros temas, para tentar entender um pouco mais esse negócio de relacionar-se com o diferente.
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