Empresas, é hora de mudar!

Como eu convenço o outro a fazer o que tem que ser feito?

– Tempo de leitura: 6 minutos

Era 31 de maio de 2022. Enquanto facilitava um curso numa empresa, me fizeram uma pergunta que era mais ou menos assim:

– Como posso usar a Comunicação Não Violenta para mostrar pro outro que ele TEM QUE fazer tal coisa, que agora também é atribuição dele, nestes tempos que a gente sabe que pode existir uma sobrecarga, dado pandemia e pós pandemia e talz?

Eu respirei. Os três segundos de respiração foram tipo umas 10h dentro de mim. Bati um papo com minhas vozes internas. Escolhi não ter filtros na resposta.

Eu: – Olha, a CNV não propõe convencer o outro de algo não. O negócio é focar na escuta e construção do que emergir entre as pessoas, a partir da escuta, ainda que depois o resultado seja parecido com o que a gente esperava. Começar com uma pauta definida e se valer da CNV para fazer o outro aderir a isso, eu chamaria de manipulação. E isso é o oposto do que buscamos.

Eu: – Como chega essa resposta pra vocês?

Pausa reflexiva de segundos…

– Mas, seguindo a linha behaviorista que acredito, tudo é manipulação. Estamos o tempo todo recebendo estímulos, trabalhando durante o mês para no final do mês ter um trabalho… recebendo prêmios por fazer o que nos é dito pra fazer…

Resumo: somos o tempo todo influenciados a algo e “levados a fazer”. Logo, a manipulação tá aí sempre.

Eu: – Sim, seguindo o que você diz sobre o behaviorismo, talvez possamos entender tudo como manipulação. Manipular poderia ter esse sentido de influenciar. Contudo, talvez, em outras linhas psicológicas, como cognitivo-comportamental, humanista… que inclusive Carl Rogers é uma das grandes inspirações da CNV… não necessariamente seria isso né. E aqui estou falando de uma manipulação deliberada, viu.

– Mas a gente tá num sistema que “estamos presos” nesse negócio de recompensa e talz…

Eu: – Pois você acertou na mosca: talvez a gente tenha que questionar esse sistema onde todo mundo diz estar tudo massa e legal, mas no fundo sabemos que existe altos índices de depressão e burnout, pessoas não dando conta, mas todo mundo fingindo que dá conta. Aliás, burnout agora pode ser visto como doença do trabalho né?

Meu coração fica meio acelerado. As mãos ficam suadas. Isso sempre acontece quando falo algo que considero duro, pesado e sincero. Principalmente em ambientes corporativos. E celebro eu me permitir falar, apesar da ansiedade e tensão que surgem. No passado, eu me silenciava.

O papo continuou um pouco mais. Respostas de como resolver o que foi trazido inicialmente, não encontramos. O que resolvi trazer, naquela hora, foi o que vejo existir a partir de um viver genuíno (que entendo como genuíno) da CNV, em forma de exemplo.

Exemplo esse que não chega a lugar nenhum, porque solução mesmo, talvez não tenha. Mas, às vezes, escutarmos uns aos outros, e os impactos do que tá rolando, seja tudo que podemos fazer.

E entre brigar e apontar o dedo, soltar um “te vira malandro”, talvez uma outra troca possa existir. Pode. Não deve. Pode. Tudo depende do tipo de relação que a gente escolhe construir.

Deixo abaixo um exemplo, diferente do que citei no curso, mas igualmente pertinente.

Exemplo 1: reconhecimento do desafio e luto.

– Eu me sinto bem impotente e desesperançoso vendo que existe uma sobrecarga de trabalho e, para que minhas coisas estejam em dia, talvez outros precisem se sobrecarregar ainda mais. Tenho medo, pois não sei outras alternativas. Me preocupo que talvez possam achar que sou péssimo profissional, e até perder meu emprego. Quero tranquilidade e segurança de que poderei custear minha vida, e esse trabalho é importante pra isso.

Gente, tudo começa com a autoempatia. Olhar pra si diante disso tudo, genuinamente.

Exemplo 2: tentativa de conversa sobre o algo mais a ser feito.

– Fulano, tem estas atividades aqui a serem feitas, uma gostaria de verificar como é pra você, pois tenho medo que seja uma sobrecarga.

– Não dou conta. É impossível entregar isso além de tudo que já tô fazendo. Vai sair mais ou menos. Ou vou atrasar. Não sei como vai ser.

– Sim, entendi que existe um risco de não sair como esperamos que saia e pode até dar problemas depois, por não ser algo feito com o cuidado necessário.

– Claro! Antes feito, que perfeito. Mas tudo tem limite mínimo né. E ninguém presta atenção no quanto tá pesado já.

– Me sinto bem impotente e compartilho dessa frustração que você tá trazendo, viu. Até me parece óbvio que você gostaria que esse excesso de demandas do agora fosse mais reconhecido. Se for isso, tamo junto e no mesmo barco.

– Claro! Pelo menos você sabe que tá tudo bem zuado né. Porque te contar viu, depois eu me estresso, fico com problema de saúde aí, e ninguém vai me ajudar. Somos só números né.

– Sim, sim. Também compartilho dessa ideia de que algumas coisas poderiam, ou deveriam, ser mudadas. Aliás, não tem como eu dizer pra você não fazer o que te passei, pois essa decisão não depende de mim. Porém, tem algo com o qual talvez eu possa contribuir?

– Na verdade até tem. Sei que você disse que precisa disso duas vezes na semana. Mas se eu te passar apenas uma, já me desatola um pouco.

– Hmmm… Ixi. Se for uma vez até rola, mas não pode faltar com isso de jeito nenhum. Senão eu não vou ter como dar andamento com os processos e vai encavalar tudo. Aí a gente tá duas vezes mais enrolado…

– Não. Tranquilo. Vou mandar sem falta. Pode deixar.

– Assim, fazemos isso nas próximas 4 semanas e vamos acompanhando, mas não garanto que depois disso continuamos assim. Mês que vem a gente avalia e vê, combinado? Prefiro ser sincero contigo sobre minha insegurança, pois acho importante cuidarmos juntos.

– Ah! Já dá um desespero aqui em pensar que no mês que vem vou ficar atolado, viu. Pqp. Mas tá… uma coisa de cada vez.

– Beleza. Combinado. Nesse mês, se tiver que fazer algum ajuste no combinado, ou der algum problema, a gente se fala e vê como cuidar.

– Fechado.

– Ah, outra coisa: se não for conseguir me entregar, me avisa um dia antes. Espero que não aconteça, mas vai que né… aí tu me avisa antes para eu me organizar e não dar tanto problema.

– Beleza.

Esse exemplo até resolvi dar um final fofinho (que já experimentei). Outros poderiam ser mais fatídicos, com o luto de que por hora está assim. Tentei esperançar um caminho de “final feliz”.

Gente, esse tipo de troca foge do senso comum. Ou melhor, foge da ideia de que tudo precisar ser feito no menor tempo possível e dialogar é perder tempo. Afinal, tempo é dinheiro.

De fato, tomar tempo para escutar e negociar coisas importantes do cotidiano, é usar o tempo de uma forma diferente como nos acostumamos. Eficiência e eficácia vorazes, que consomem indivíduos e relações. Mas, no final, tudo está sendo entregue não é? Inclusive, as almas. E a saúde. Entregues à própria sorte.

Pausar. Respirar. Escutar. Verbos que urgem por espaço.

Claro que aquilo que eu disse aqui não é a pílula mágica pra mudar toda uma cultura organizacional. O buraco é muito, muito, muito mais embaixo.

Tampouco acho que ambientes “cool” com pufes e espaços pra nossos bichinhos, ou um home office maneiro, sejam as respostas pra mudança cultural.

Aliás, eu nem me arrisco a dizer o que precisa ser essa mudança. Tá doido que eu vou falar por um monte de gente, sem saber da vida e contexto delas.

O que eu sei, e falo com certa segurança, é que nosso agir vem de nosso pensar. Ou, ao menos, é também influenciado pelo nosso pensar.

Mudar a forma como nos comunicamos e buscar um lugar de escuta e empatia, começa na mudança da forma que olhamos para nós mesmos e para as relações. Aí reside minha esperança.

Pessoas constroem mundos. E quais mundos podemos construir a partir de um paradigma de não-violência, escuta e empatia?

Posso alguns imaginar, ainda que não saiba ao certo o que pode surgir. Mas, certamente, são diferentes de um viver enraizado no consumo voraz, exploração e desconexão.

Já dizia Rubem Alves: – O que faz o jardim são os sonhos do jardineiro.

Há de se arar a terra para semear. Há de semear pra um dia colher. E, para certas semeaduras, talvez a gente nem vai estar vivo para ver seus frutos doces e suculentos.

Pois, se alguém não tivesse plantado tâmaras antes, vindouras gerações não provariam de seu doce sabor.

Provemos um pedacinho da utopia no agora. Quem sabe num futuro qualquer, ela seja a bola da vez.

Alguém no final do curso disse que estava equivocado em pensar que o curso seria ”mais do mesmo e muito senso comum, coisas manjadas”. Ficou positivamente surpresa e reflexiva.

Eu sorri.

Se fosse para dar respostas prontas e reforçar padrões de relação que ignoram as individualidades e replicam uma violência sutil e sufocante, que a todos visita , eu nem levantaria da cama.

Sergio Luciano
Um mineiro que gosta de conversar, aprender com o cotidiano e escrever. Investiga psicologia junguiana, comunicação não violenta, poder, privilégio, democracia profunda, dentre outros temas, para tentar entender um pouco mais esse negócio de relacionar-se com o diferente.
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