Trago neste texto um relato sobre o ocorrido numa facilitação que aconteceu em 2022. Tudo começou com uma colocação de uma das participantes:
– Eu não sei o que fazer quando escuto fulano fazendo uma piada que é ofensiva a grupos que me são importantes, lá no trabalho. Já ouvi algumas vezes. Dá vontade de ir ali, apontar o dedo, ensinar que ele tá muito errado, brigar com ele. Mas fico em silêncio, porque está errado eu fazer isso. — disse ela durante o encontro.
Com minha curiosidade espontânea, perguntei:
EU: – Tu não pode ensiná-lo que está errado não? Tá errado brigar com ele e ensiná-lo?
ELA: – Ah, mas é que aí tô querendo impor meu ponto pra ele né. E tô querendo educá-lo. Querendo convencê-lo.
EU: – Vou te contar um segredo que eu acho que ainda não tinha dito, nesses encontros todos: eu tenho lado. Eu quero convencer o outro de que ele tá errado. Muitas vezes, eu não deixo de querer ensiná-lo quando resolvo escutá-lo. E ainda acho que tem gente errada pra cacete, que tem ideias merda. Isso não mudou até hoje, viu.
E segui:
– A única coisa que mudou pra mim, é que ao mesmo tempo que acho que o outro está muito errado, acho que ele até tem liberdade de falar essas coisas que acho merda, e responsabilidade de lidar com isso. Jurídica (quando cabível) e socialmente.
Breve momento de silêncio. Continuei.
– A questão é: você quer falar tudo isso que tu queria falar, ensiná-lo (fiz um gesto de aspas com os dedos ao dizer isso) que o que ele fez não foi legal, mas a partir de uma fala pessoal, e não assumindo o papel de professora (aspas novamente) dele?
Pausa didática. Contextualizações.
É um tema delicado, de certo. Divergir do senso comum, que é apontar dedos, nos pede coragem. Desprendimento. Convicção e compromisso com o que está por trás de nossa vontade de abrir a cabeça do outro e enfiar o respeito ao diferente, às minorias que são afetadas por piadas que soam depreciativas, de falas e comportamentos que levam a marginalização de um ser humano.
Tem horas que quero silenciar o outro, calá-lo. Ensiná-lo forçadamente, na esperança que aquilo que vejo como violência, cesse. Não mais ocorra no futuro.
A questão é:
1) minha intenção é retaliação e dar uma lição no outro, numa espécie de punição pelo seu ato?
2) Ou minha intenção é de usar essa força coercitiva como proteção, na intenção consciente de mitigar um dano, ao mesmo tempo que reconheço que esse cara que teve uma ação mega idiota é desprezível (pra mim) pra cuidar de algo importante (diversão, conexão a partir do que ele vê como brincadeira, etc.), talvez alheio aos impactos de sua ação em outras pessoas e no imaginário coletivo?
É sutil essa diferenciação. Desafiadora do senso comum. Pois o primeiro olhar parte do pressuposto que a punição resolveria a questão. Talvez pela vergonha, pelo medo. Mas, ainda que a atitude cesse, a raiz não tá sendo abordada. E, sim, é importante que a atitude cesse. E não me cabe dizer que esse método é errado, ou certo.
Já o segundo olhar mantém o espaço aberto para conexão com o lugar de onde o outro parte, ainda que seja um lugar que considero desprezível. E seguir a segunda lógica não é pra qualquer um. Arrisco a dizer que, ainda hoje, é para poucos. Pois há um preço a se pagar. Divergir da lógica punitivista significa abrir margem para se rotular (por si mesmo), e ser rotulado (por outros) como leniente com violência. Ainda que não tenha nada a ver com isso, sabe?
Sigamos com a historinha.
Algumas palavras trocadas mais, e alguns silêncios mais… decidimos por eu dar um exemplo de como seguir expressando-se:
– Olha fulano. Me sinto bem desconfortável ouvindo essa piada que você fez, sabe. Me parece que você acha engraçado e talz, e talvez até queira ter a liberdade de falar isso e espera que os outros compreendam que é só brincadeira, que não tem maldade. Mas como eu convivo com pessoas que vejo sentirem na pele impactos, diretos ou não, de piadas assim, esse incômodo é grande sabe. Aliás, vi estes dias que um garoto de 8 anos ficou gago depois de descer para brincar no conjunto onde mora, escutar de outras crianças que por ser negro ele não deveria, não podia, estar ali. Isso é doloroso, sabe? E acho que piadas como essa, feitas por várias pessoas, podem alimentar esse tipo de situação, que tem impacto real na vida de outros. Como chega isso pra você?
É um textão. Um sermão, parece. De tão extensa que se tornou esta expressão.
Mas, veja: se eu estava disposto a dar um sermão apontando o dedo pro outro, tamanho o impacto que essa questão tem pra mim, posso fazê-lo a partir de como eu experimento a situação, na esperança de convidar o outro a perceber como me sinto diante disso. O que é importante pra mim.
Talvez não sirva pra nada. Talvez ele dê de ombros. Ou talvez ele se conecte, ainda que não concorde. Não existe garantia alguma de conexão. Existe, tão somente, minha escolha de seguir o caminho que me faz sentido. E sustentar-me nele enquanto continuar fazendo sentido. É sobre as escolhas que faço.
Reconhecer que também posso falar assim e não apenas apontando dedos, é liberdade. Liberdade porque não preciso ser refém de meus afetos e apontar o dedo na cara de todo mundo sempre, e tampouco preciso ser moralista comigo mesmo e dizer que preciso falar a partir do eu porque é errado o outro jeito.
Me responsabilizo pela minha escolha. E posso escolher tendo em mente o objetivo que quero atingir, do que estou querendo cuidar, ponderando o que considero uma melhor estratégia.
Inclusive, às vezes, o melhor pra você talvez seja soltar os cachorros, falar sem filtro, e lidar com o impacto disso depois. E tá tudo bem. Não me cabe dizer o que é melhor pra você.
Essa troca e reflexão estão num contexto do encontro que facilitei ontem. Uma vez por mês ofereço uma supervisão para quem está inscrito em nosso curso on-line de CNV, para aprofundar, refletir e praticar juntos. As falas eu adaptei um pouco, já que não lembro 100% do que escutei do outro. Mas a essência, está ali.
O contexto de ontem era vulnerabilidade. Uma conversa profunda sobre significados de vulnerabilidade e como ampliar o olhar que temos pra ela. Mas essa ampliação do olhar, fica para um outro dia.