Saia da zona de conforto

Nada justifica!

– Tempo de leitura: 4 minutos

Nada justifica a violência física. Nada justifica a fome. Nada justifica o racismo. Nada justifica nenhuma violência, verbal ou psicológica. Nada justifica as microviolências, que muitas vezes normatizamos e dizemos “veja bem…”

Ainda assim, relativizamos nossa preocupação com algumas, não damos conta de endereçar outras, e ainda nos alienamos, em certa medida, da dor e e sofrimento ao redor, em prol de bem-estar emocional.

Infelizmente a vida real, a qual somos convidados a viver, é um pouco menos fofa que nossas ambições mais utópicas de como as coisas poderiam ser.

Entender que a violência é um fenômeno que acontece, entre nós e em suas mais diversas formas, e ter uma ação consciente ativa de buscar outras estratégias que não estas vistas como violentas, é o que vejo como um grande desafio.

Tentamos endereçá-las de forma coercitiva, ao definir nos termos da lei aquilo que não pode ser feito em hipótese alguma, com a esperança de que todos entendam que cometer tais atitudes tem um alto custo financeiro (multa) e de liberdade (reclusão).

Entretanto, isso não basta. Pois, construir uma sociedade baseada no medo de agir, e não endereçar o que vemos como causas, pode ser insuficiente. Afinal, se o poder coercitivo parece perder força, a violência novamente ganha espaço. Ausência de punição, liberdade de ação.

Portanto, nos é necessário educação. Precisamos educar nossas crianças para que elas não sejam violentas. Para que sejam respeitosas umas com as outras e, no futuro, tenhamos uma sociedade menos violenta.

Aí, uma treta: como uma pessoa que cresce normatizando algumas violências, e sendo violenta, educa uma criança para que seja não-violenta? A pensar…

Nos eduquemos, uns aos outros, agora, sobre nossas violências. Façamos nosso dever de casa de olhar para as micro e macro violências que cometemos e que apoiamos direta ou indiretamente. Na ação ou não ação.

E que cada um siga não só cuidando do quintal do vizinho, que também é necessário, mas que olhe para a própria caminhada em igual medida.

Mas, afinal, o que é a violência? É tudo aquilo que está previsto na lei que é passível de punição? Se sim, logo… eu não sou violento. Jamais seria preso, pois não faço nada daquilo…

Podemos ir um pouco além, e enxergar como violência tudo aquilo que causa dor ou dano para outra pessoa, e descuida de alguma maneira de seu bem-estar. Ainda que eu não veja como violento, que não esteja tipificado na lei, pode chegar com violência para o outro. Descuidar dele.

– Mas… aí… tudo é violência oras. Ou tudo pode ser. Vai ficar condicionado ao que o outro acha, e eu vou precisar me adaptar às frescuras do outro?

Não! Não! Não!

Proponho que a gente aprenda a escutar mais. Escutarmos uns aos outros e compreender os impactos de nossas atitudes uns nos outros. Ainda que num sentido mais acadêmico existam recortes bem claros do que é visto como violência, no âmbito pessoal a subjetividade também precisa ser incluída de alguma forma.

Portanto, façamos um inventário das violências nossas de cada dia. Aquelas atitudes que, talvez, possamos revisitar e ver se ainda faz sentido mantê-las.

  • Hoje descobri que fulano que convive comigo sente-se incomodado com o fato de eu interferir enquanto ele está falando e concluindo seu raciocínio. E escolho, conscientemente, esperar ele terminar sua fala.
  • Percebo que eu assisto alguns tipos de programas e dou audiência para eles, que falam sobre características de outras pessoas. Decidi por não assistir mais, e conversar sobre isso com outras pessoas próximas.
  • Quando me estresso tenho o hábito de gritar com todos da família. Estou tentando gritar menos e, quando grito, volto para conversas sobre os impactos de minha atitude. Escuto a dor de quem foi impactado, sem tentar me justificar.

Olhar para essas questões é uma forma de, ao menos, olhar o impacto de nossas ações no outro, saindo do piloto automático da justificativa: “- veja bem, esta não era minha intenção”. Afinal, intenção e impacto são coisas diferentes.

Em última instância, tendemos a não nos identificar com o mal. Reivindicamos o lado do bem. O mal está nos outros. Só me cabe militar para que os outros se convertam e sejam tão bons quanto eu.

Nada justifica nada, até a próxima página, onde explicações de nossa parte são justificáveis.

Sigamos denunciando as mazelas, as ações e falas que descuidam do bem-estar de indivíduos e de toda uma coletividade. Tenhamos ações propositivas de transformação. Apoiemos causas.

E nunca nos esqueçamos de que a sementinha da violência também vive em nós. E vez ou outra cresce e dá frutos.

Somos parte do problema e da solução. Cada qual com sua responsabilidade de cuidar, onde os braços alcançam, da transformação que gostaríamos de ter.

Ainda sou descrente de que a gente consiga acabar com nossas violências. Mas, pelo menos, que trabalhemos ativamente para inventariar o máximo delas, nas nossas relações e na sociedade.

E que, à medida que as inventariamos, enderecemos cada uma, com novas e criativas atitudes, que promovam bem-estar e cuidado com todas e todos. A nível individual, relacional, e coletivo.

Nada justifica as mazelas que vemos e enfrentamos. Talvez, não precisaríamos passar por isso tudo, individual e coletivamente. Mas passamos.

– Mas Sérgio… aja saco para ficar problematizando tudo, e se importando com tudo.

Sim! Aja saco. Afinal, nenhuma mazela e violência se justifica, não é?

PS1: Esse texto não tem pretensão de soar fofo. Não reivindica ser empático. É só uma provocação e reflexão um tanto pessimista sobre o ideal de como tudo poderia ser, frente a uma realidade um tanto mais ácida e cruel, da qual somos também parte do problema.

PS2: Não tive intenção alguma de relativizar preocupações. O foco foi levantar a questão para o invisível aspecto a qual todos estamos sujeitos: “ninguém dá conta de tudo, e todos temos nossas alienações”.

PS3: Sonho com o dia que, em meio às diferenças e singularidades, a gente consiga, como corpo coletivo, dar conta desse tudo que não se justifica. Utopia, bem sei… mas que a gente consiga torná-la cada vez menos irreal.

Sergio Luciano
Um mineiro que gosta de conversar, aprender com o cotidiano e escrever. Investiga psicologia junguiana, comunicação não violenta, poder, privilégio, democracia profunda, dentre outros temas, para tentar entender um pouco mais esse negócio de relacionar-se com o diferente.
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